Autora expõe como redes sociais alimentam a “máquina da vergonha”
Cathy O'Neil analisa como um sistema baseado em constrangimentos públicos e insuflado por algoritmos gera lucros às empresas e adoecimento aos usuários
A matemática e expert em algoritmos de IA Cathy O’Neil sabe bem o que é ser acossada pela vergonha. Desde pequena, era estimulada, dentro e fora de casa, a lutar com o ganho de peso. Quem vive num mundo que elege padrões (de beleza, de corpo, de saúde…) é constrangido a fazer parte dele – do contrário, será atacado e ridicularizado na arena pública, especialmente na internet.
Partindo de sua experiência pessoal e de seu profundo conhecimento de como empresas do Vale do Silício atuam – trabalho que ela destrincha no best-seller Algoritmos de Destruição em Massa -, a americana buscou desmontar como um sistema ancorado em formas de embaraço e opressão ganha dinheiro à custa do sofrimento alheio.
O resultado dessa investigação está no livro A Máquina da Vergonha, recém-lançado pela Editora Rua do Sabão. Nele, Cathy denuncia como o constrangimento, uma atitude tão velha quanto a espécie, mas ressignificado e explorado à exaustão em tempos de mídias sociais, se tornou um dos pilares de uma sociedade altamente digitalizada.
A vergonha opera em diversos meios: diante de pessoas acima do peso, gente pobre, viciados em drogas, indivíduos com comportamentos atípicos… E ganha nuances locais e culturais, hoje expandidas pelas forças da internet.
O que a autora mostra, de forma clara, é que as redes sociais – ou “redes da vergonha”, como ela as chama – mudaram o patamar e o alcance do constrangimento público, transformando-o em ferramenta que maximiza audiências e lucros das empresas, em detrimento da saúde mental dos usuários. E não é à toa que tantos estudos já associam a vida entre X, Instagram, TikTok e companhia a maior risco de desenvolver ansiedade e depressão.
“A dinâmica das nossas histórias com a vergonha tem sido tão clara quanto a de uma peça de teatro medieval de moralidade. Essas imensas máquinas da vergonha atacam os desfavorecidos para explorar sua obesidade, vícios, pobreza ou saúde deficiente, ganhando poder e fatia de mercado no processo. Elas tratam suas vítimas como lucrativos alvos de negócios ou como totalmente descartáveis”, acusa no livro.
É, de fato, preocupante que grupos e companhias recorram ao constrangimento como isca para vender produtos, soluções e promessas. Assim como é assustador que o cyberbullying, escancarado ou não, possa tirar vidas, canalizando jovens sem amparo ao suicídio.
Contra perversões desse tipo é que soa o alarme de O’Neil. E a pesquisadora vai além: no livro, ela examina como podemos empregar o “lado positivo” da vergonha, aquele que expõe os opressores e os obriga a rever suas condutas, para criar uma sociedade melhor.
Com a palavra, a autora.
A Máquina da Vergonha
Você acredita que as redes sociais e as Big Techs estão turbinando ainda mais a “máquina da vergonha”, mesmo com tantas campanhas de conscientização e movimentos jurídicos em curso?
Com certeza! Em primeiro lugar, porque não é realmente ilegal o que elas fazem. É difícil inclusive imaginar como seria possível tornar essa atividade ilegal, e os decisores políticos já estão tendo dificuldades para encontrar soluções em políticas de segurança voltadas ao uso de inteligência artificial (IA). Note que muitas das grandes empresas do Vale do Silício reduziram o pessoal ou eliminaram as equipes dedicadas a justiça e direitos ligados a IA, moderação de discursos tóxicos ou qualquer outra pseudotentativa para resolver o problema do constrangimento nas plataformas de redes sociais. Elas já não estavam fazendo grande coisa e agora nem sequer se dão ao trabalho de fingir que tentam. Essa iniciativa foi liderada por Elon Musk, mas todas as companhias estão abrandando esforços para tornar suas plataformas locais mais razoáveis.
O que pode ser feito para banir esse lado ruim da internet? Até que ponto a regulamentação das mídias sociais seria uma saída?
Não sei exatamente como é que esse lado poderia deixar de existir. Talvez, para casos extremos, como quando jovens estão começando a ficar perturbados demais e até pensando em se suicidar, pudéssemos criar novas leis de proteção. Mas, em geral, é difícil imaginar a proibição das táticas de constrangimento em público. Em vez disso, penso que o ideal seria ter modelos alternativos de redes sociais, em que um design melhor não encoraje comportamentos tóxicos, um sistema que não seja orientado por lucros e anúncios.
Uma coisa que volta e meia penso é que a “máquina da vergonha” lembra uma praga, como uma versão da Covid, diante da qual nós, ou talvez nossos filhos, acabarão por desenvolver mais ou menos imunidade. Consigo imaginar as gerações futuras a perguntar porque é que pessoas como nós morderam tantas vezes a isca e se amontoaram em comboios da vergonha com tanta vontade. Afinal, é nossa vontade de envergonhar uns aos outros que alimenta a máquina.
Como podemos estimular os aspectos positivos da vergonha para a sociedade?
Boa pergunta! E foi justamente por isso que desenvolvi as noções de “bater em cima” versus “bater em baixo”. Se nos lembrássemos de envergonhar aquelas pessoas que têm voz e escolha, que podem se redimir e se explicar, então teríamos mais uma forma de responsabilizá-las, melhor do que ficar rebaixando-as ou humilhando-as em seus piores momentos. Acho que podemos nos esforçar por isso.