Digital Completo: Assine a partir de R$ 9,90
Imagem Blog

Conta-Gotas

Por Diogo Sponchiato Materia seguir SEGUIR Seguindo Materia SEGUINDO
Pequenos diálogos para desbravar grandes obras & ideias − e cuidar melhor de si e do mundo

Aprender a imaginar na era da técnica: os mitos de um escritor português

Gonçalo M. Tavares cria fábulas que subvertem a história, o folclore e a busca por sentido. E têm um papel a cumprir em tempos dominados por máquinas

Por Diogo Sponchiato Materia seguir SEGUIR Materia seguir SEGUINDO Atualizado em 20 Maio 2025, 16h43 - Publicado em 20 Maio 2025, 16h27

O diabo de Gonçalo M. Tavares tem duas mãos esquerdas, mas também se propõe a cuidar de crianças. E, graças a essa aura de estranheza, é um dos convidados a ingressar nas Mitologias desse produtivo e inventivo autor português. 

A ele se somam um homem que arruína tudo com seu mau-olhado, uma inquieta mulher sem cabeça, as cinco crianças perdidas da família Romanov destronada pelos bolcheviques, um gigante e sua revolução, uma máquina de liquidar gente… Faz sentido? Não importa. Importa o encanto dessas fábulas que rompem os limites do tempo, da história, do folclore e da própria busca por sentido.

Autor de obras premiadas como Aprender a Rezar na Era da Técnica, Tavares tem dezenas de obras publicadas, algumas delas no formato de uma série com seu mundo peculiar. Repete a dose com suas Mitologias, que saem no país pela Editora Dublinense. O último volume carrega no título seu duplamente canhoto personagem, O Diabo. 

Numa era de tanta informação e explicação – com direito a fake news -, será que drenaram nossa capacidade de fabular? É essa provocação que o escritor nos faz pelos (des)caminhos dos três livros da série até agora apresentados ao leitor brasileiro.

O diabo (Mitologias)

diabo-mitologias

 

São histórias que, como o flautista do conto dos irmãos Grimm, nos seduzem com uma melodia singular, que nos liberta temporariamente das leis da física e da biologia. Histórias que dispensam a lógica e a finalidade – e, por suposto, a necessidade de um final (feliz ou não).

Continua após a publicidade

Nessa mitologia particular, o diabo e outros personagens de repente assumem o fio da meada das mãos do deus-narrador. E passam a alimentar, no leitor cutucado a seguir seus passos, essa capacidade tão subestimada (e tão pouco cultivada) no tempo das telas e das máquinas: a imaginação.

Com a palavra, Gonçalo M. Tavares.

Ainda há espaço para os mitos na era da técnica?

Sim, há espaço para os mitos em meio à técnica. Aliás, eu acho que precisamente a ideia de minhas Mitologias foi introduzir a tecnologia e as máquinas nos mitos. Se pensarmos nos mitos clássicos, estão presentes humanos, animais, pedras e ilhas, por vezes transformados em humanos e vice-versa, mas não estão presentes as máquinas. E elas são realmente a essência, eu diria, da paisagem atual.

Pensando numas mitologias contemporâneas, as máquinas teriam que estar ao mesmo nível do humano, do cão, do leão… Neste momento, temos muito mais contato com computadores do que com leões. E me interessa muito a ideia de inserir uma máquina, algo tão relacionado ao mundo racional, em histórias com estranhos acontecimentos. São as máquinas como fantasmas, com possibilidades de interação inclusive afetiva, afinal, máquinas e mitos fazem parte do mesmo mundo em 2025.

Continua após a publicidade

No final de um dos volumes de suas Mitologias, você evoca uma reflexão do pensador Walter Benjamin: ele pondera que o excesso de explicação pode tirar o encanto do mundo. O que perdemos ao sermos inundados de tanta informação?

É difícil fazer um diagnóstico do mundo contemporâneo, porque há várias tendências. Por um lado, há a multiplicação da informação; por outro, há a multiplicação do fake, de tudo aquilo que é falso. Estamos em meio a essa luta entre a verdade e a mentira. Hoje estamos diante de tanta coisa fake, que são muitas vezes mentiras explicadas. Então me agrada essa ideia de Walter Benjamin de preservar o mistério, de termos algo não totalmente explicado, nem para um lado, nem para o outro.

Nós realmente estamos na era da informação, da verdadeira e da falsa, e estamos sendo atacados, pela nuca e contra a testa, o tempo todo por elas, como se fosse um bombardeamento. E já não existe um tempo para parar e imaginar. A imaginação só existe quando se para de consumir informação, quando se desliga a TV e também a internet. É nesse momento de pausa e de silêncio que a imaginação aparece. E aí os mitos ganham força.

E os mitos também podem ser alimentados pela informação. Me interessa muito poder transformar a notícia normal ou doméstica em qualquer coisa mitológica. Isso é possível: há notícias que nos remetem para atos de coragem e heroísmo, para uma sensação invulgar, para a estranheza.

Suas Mitologias mesclam figuras folclóricas com personagens até históricos. Quem pode ser convidado a ingressar nesse território mítico pessoal? 

É verdade, interessam-me as figuras, digamos, do folclore tradicional, quer seja do folclore regional, quer seja do universal. Desde personagens como Hans e Gretel [nomes originais do conto de João e Maria], dos irmãos Grimm, até as histórias de aldeia, como a da mulher sem cabeça e a do homem do mau-olhado, que aparecem nos livros. Então procuro misturar esse lado dos mitos gregos clássicos e as histórias rurais, como o perigo do lobo que come as galinhas e muitas vezes representa o mal na aldeia, com personagens históricas.

Continua após a publicidade

No meu caso, os cinco irmãos perdidos são os filhos dos Romanov. Me interessava criar essa espécie de curto-circuito entre a história real e a mitologia, como se fosse um sonho ou devaneio. E, nós, como leitores, nos sentimos um pouco protetores desses meninos. Esses cinco personagens são, de alguma maneira, também cinco mitos, porque historicamente ainda se discute o que aconteceu a eles. Se foram mortos ou, como depois colocaram algumas teorias, teriam fugido. Portanto, os filhos do czar são fantasmas que andam no meio de outros mitos, como se tivessem saído de um tempo histórico e entrado no tempo mitológico. É a mistura da fábula com a história.

Além da dupla mão esquerda, o que o diabo de Gonçalo M. Tavares tem que outros diabos não têm?

Bem, o meu diabo tem uma dupla mão esquerda, sim. O lado direito, na língua portuguesa, tem muita a ver com a questão da retidão, de alguém que vai em linha reta e age corretamente do ponto de vista ético. Como se a bondade andasse pelo lado direito. Portanto, o diabo caminha pelo lado esquerdo. Esquerdo em italiano é sinistro, o que nos remete à nossa palavra “sinistro”, algo terrível. Então a dupla mão esquerda do diabo vem a calhar ao personagem.

Mas esse diabo também tem um lado paternal, ele cuida dos meninos, é um diabo cuidador, que gosta de crianças, e não para praticar a pura maldade. É um diabo estranho. E, muitas vezes, os diabos são assim. Aliás, os diabos reais, históricos, políticos não são seres maus dos pés à cabeça. Os diabos verdadeiros e mais perigosos são aqueles que têm uma parte que parece benigna. Senão não seríamos seduzidos por essa figura. Somos seduzidos pelo diabo porque ele pode ter um rosto belo ou palavras atraentes.

Então esse diabo que tem duas mãos esquerdas e terríveis, que só sabem praticar a maldade, também pode ter, à certa altura, um rosto extraordinário, que funciona como uma espécie de iluminação numa sala. Portanto, alguém que leva atrás de si muita gente. E eu acho que, se nós olharmos bem para as mãos de algumas pessoas que andam por aí, pessoas com poder, veremos que têm duas mãos esquerdas. Elas podem estar escondidas, mas tem duas mãos esquerdas e terríveis ali.

Continua após a publicidade
Compartilhe essa matéria via:

 

 

Publicidade

Matéria exclusiva para assinantes. Faça seu login

Este usuário não possui direito de acesso neste conteúdo. Para mudar de conta, faça seu login

Domine o fato. Confie na fonte.

10 grandes marcas em uma única assinatura digital

Digital Completo

Acesso ilimitado ao site, edições digitais e acervo de todos os títulos Abril nos apps*
Apenas 9,90/mês*
ABRIL DAY

Revista em Casa + Digital Completo

Receba 4 revistas de Veja no mês, além de todos os benefícios do plano Digital Completo (cada revista sai a partir de R$ 7,48)
A partir de 29,90/mês

*Acesso ilimitado ao site e edições digitais de todos os títulos Abril, ao acervo completo de Veja e Quatro Rodas e todas as edições dos últimos 7 anos de Claudia, Superinteressante, VC S/A, Você RH e Veja Saúde, incluindo edições especiais e históricas no app.
*Pagamento único anual de R$118,80, equivalente a R$ 9,90/mês.

PARABÉNS! Você já pode ler essa matéria grátis.
Fechar

Não vá embora sem ler essa matéria!
Assista um anúncio e leia grátis
CLIQUE AQUI.