A última lição do filósofo por trás da ‘modernidade líquida’
Obra derradeira de Zygmunt Bauman, fruto de um diálogo entre o longevo intelectual polonês e um jovem jornalista italiano, chega ao país. Leia um trecho

“O que será que Zygmunt me escreveu hoje?”, era meu pensamento recorrente todas as manhãs. Parece incrível, mas é verdade. Ele tão madrugador, mas também notívago: entre sete e oito da manhã era o momento mais provável de chegarem seus comentários às reflexões e perguntas que eu lhe enviava em plena noite. Mas às vezes ele me surpreendia: eu podia lhe escrever às duas da madrugada e receber resposta menos de meia hora depois.
Foram meses inesquecíveis, pelos quais serei para sempre agradecido a ele e a toda a sua família: o professor Zygmunt Bauman me presenteou com algo impossível de retribuir, único, o enésimo ensinamento de uma vida extraordinária.
Estas talvez sejam as palavras mais difíceis que algum dia escrevi, porque relembrar o que senti em 9 de janeiro de 2017, exatamente quando olhava a prateleira de congelados num supermercado, é algo tão doloroso que mereceria um recalque freudiano. Fazia alguns dias que eu já não recebia mensagens dele.
Na última mensagem que me enviou, ele me perguntava quanto, em minha opinião, deveria ainda escrever para concluir o último capítulo do nosso livro. Ele, o maior, perguntando a mim, um fedelho, quanto devia escrever. A grandeza desse homem só era comparável à sua humildade.
Até seus últimos dias nesta terra, ele viveu para sua missão: fazer-nos conhecer o mundo. Sim, ele literalmente adotou as gerações seguintes às suas e tomou-as pela mão, a fim de ajudá-las a conhecer e interpretar verdadeiramente o mundo.
Zygmunt Bauman tinha um dom extraordinário: ensinou-nos um método de análise e viveu para construir instrumentos que permitissem compreender onde nos encontramos e para onde iremos.
Pouco antes de seu desaparecimento, ele me escreveu: “Este livro estará sobre seus ombros, deve ficar bonito e genuíno como você me prometeu”. Quando li aquela mensagem, pensei estar sendo repreendido por ainda não ter lhe enviado o texto passado a limpo. Fiz isso de imediato. Uma hora depois ele recebia por inteiro tudo o que havíamos escrito juntos até aquele dia.
Zygmunt não voltou ao assunto, e só depois, só naquele dia, diante da prateleira de congelados, entendi o que ele verdadeiramente pretendia. Ele havia compreendido aquilo que eu não podia e realmente não queria compreender. O que Zygmunt me pedira era um livro simbiótico: nossos sessenta anos exatos de diferença no registro civil deviam superar o limite imposto pela modernidade e traçar uma união eficaz entre descontinuidade (eu) e continuidade (ele). Ele havia insistido nesse ponto.
Um dos autores que o professor Bauman gostava de citar com mais frequência, recentemente, é José Ortega y Gasset, suas teorias sobre o “devir”. Ortega y Gasset argumenta limpidamente que o problema não se situa tanto nas diferenças entre as gerações. O ponto crucial não é o fato de as gerações serem diferentes umas das outras: é sua coabitação simultânea no mesmo mundo.
Sobretudo, ele nos recorda que as gerações se definem em relação à existência recíproca. Para Hans Jonas, a consciência de ser mortal torna importante o tempo que a pessoa vive. E podemos afirmar sermos os únicos viventes que têm essa consciência de maneira tão declaradamente exaustiva. Mas ter essa consciência é de fato um bem?
O mesmo Jonas respondeu: estou na plenitude de minhas faculdades intelectivas, posso pensar, interessar-me pelas coisas, ler livros, ler o que os outros dizem, falar com eles, mas, com o passar dos anos, entendo cada vez menos a poesia moderna, e a música contemporânea não me dá grande prazer; simplesmente não aceito outras experiências.
Tampouco me sinto completo, mas incomoda-me fazer outras coisas. Os jovens que me circundam não estão sobrecarregados pelo peso das experiências passadas como eu estou. Em suma, para Jonas o transcorrer do tempo dá autoridade aos hábitos ainda não enraizados. E os jovens não
podem, por natureza, criar hábitos enraizados pelo peso do tempo. A relação entre as gerações, portanto, é resumível num problema de continuidade e descontinuidade.
E é justamente essa relação, para o professor Bauman, que gera o presente e gerará o futuro. Durante sua extraordinária existência, Zygmunt Bauman reiterou que, se temos o progresso, se temos a história, é graças à dialética entre continuidade e descontinuidade.
Não se pode falar dos anciãos a não ser em oposição aos jovens: pais/filhos, professores/alunos se definem reciprocamente graças à relação de interdependência. Todos nós estamos passando ou já passamos por alguma dessas definições dicotômicas.
Mas na modernidade líquida tudo mudou. Cada um de nós, no palco da contemporaneidade, está ciente da impotência dos instrumentos que possui. Somos atores do grande teatro do mundo, mas quando os refletores estão todos em nós a agnosia ideativa nos atinge como um soco.
Se, no tempo em que Bauman cresceu, a tese da racionalidade instrumental de Max Weber era a melhor representação da realidade – porque os objetivos a alcançar eram claros, era preciso encontrar os meios adequados para realizá-los –, hoje, na melhor das hipóteses, os nascidos em tempos líquidos têm somente os meios. Alguns recursos, algumas competências, algumas habilidades.
Mas, no nível inconsciente, cada um pode apenas se perguntar constantemente: afinal, o que posso fazer com tudo isso? Zygmunt Bauman o sabia bem. E sabia que a proliferação da luta geracional não passa de um engano.
Acho que era esse o motivo que o impeliu a escolher uma pessoa como eu para ministrar a última lição de sua vida. Acho que essa é a razão pela qual ele decidiu trabalhar neste breve livro com tanta paixão e devotamento.
* Thomas Leoncini é um jornalista italiano que manteve intensa correspondência com Zymunt Bauman, é coautor de Nascidos em Tempos Líquidos, a ser publicado pela Editora Zahar