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A palavra de que o mundo precisa, segundo premiada autora portuguesa

Em 'Misericórdia", escritora Lídia Jorge cria microcosmo em que desafios do envelhecimento dividem espaço com a força ou fragilidade dos laços sociais

Por Diogo Sponchiato Materia seguir SEGUIR Materia seguir SEGUINDO Atualizado em 23 set 2024, 20h43 - Publicado em 23 set 2024, 18h52

Maria Alberta é uma senhora com restrições de mobilidade, instalada em um residencial para idosos no litoral português, que faz críticas à filha, escritora, por publicar histórias protagonizadas por gente comum… Nada de enredos épicos e nobres heróis, como desejava.

Então talvez ela se surpreendesse ao saber que seria a voz e a personagem principal de um livro – de um pequeno mundo habitado por mulheres e homens mais velhos, seus cuidadores, enfermeiros e familiares, cujas fronteiras (ao menos as físicas) são os muros do instituto.

Pois dona Alberti, como é conhecida nos corredores do Hotel Paraíso – estabelecimento que se aposentou da função de hotel e tornou-se um lar para idosos – é quem nos conduz pelas passagens, salas e quartos da vida no romance Misericórdia, da escritora portuguesa Lídia Jorge. Ora acompanhada pela noite que ganha asas e lábios de criatura misteriosa e a desafia com perguntas, ora pelas colegas de mesa, credo e cruz, ora pela filha que, nem sempre com a esperada frequência, vem visitá-la.

Sim, a heroína deste livro, se é que podemos falar em heroína, é uma velhinha numa cadeira de rodas que depende de ajuda para se trocar, comer e banhar-se. Mas também alguém que não se intimida com adversários – os do convívio e os da memória. E o microcosmo é essa instituição de longa permanência com moradores e funcionários que vêm e vão (nem sempre para voltar), uns carinhosos, outros brutos na lida diária.

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Publicado pela Autêntica Contemporânea, Misericórdia é o título que a mãe de Lídia sempre lhe pediu para escrever. E dona Alberti, não por acaso, só podia ter sido inspirada nela. A obra ganhou sete prêmios literários na Europa. Talvez porque toque justamente em dois dos grandes temas da atualidade: o envelhecimento da sociedade e a necessidade de (man)termos empatia uns pelos outros.

Enquanto dona Alberti desfia, em um gravador e pequenos bilhetes de poesia, seus itinerários e impressões sobre a vida, incluindo dias tenebrosos sob o cerco de uma pandemia, somos instigados a recordar os avós que já se foram, a observar os pais que amadurecem e a vislumbrar o que o destino nos reserva. Entre perdas e ganhos, no corpo e na mente, a velhice nos acena, nos confronta, nos conforta.

E, como cidadãos, pacientes, irmãos e vizinhos que envelhecem em um planeta assolado por mudanças climáticas, desigualdades sociais, ameaças virais e guerras redivivas, convém pedir e cultivar essa tal de misericórdia, esse doar-se com o coração, como insinua sua origem etimológica. Por nós e pelo outro. Pelo velho e o novo. Com a palavra, Lídia Jorge.

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Diante da experiência de escrever o livro e do relacionamento com a sua mãe, que inclusive inspirou esse trabalho, o que julga ser o maior desafio ao envelhecer?

Julgo que o envelhecimento coloca desafios diferentes de pessoa para pessoa, mas, se eu quisesse generalizar, diria que o maior desafio consiste em manter a dignidade, isto é, saber perder autonomia sem que a pessoa se sinta pobre de pedir. Acrescentaria ainda que manter a ideia de que cada ser humano faz parte de uma cadeia vasta, de que se é um entre outros, apesar de se ser singular, ajuda na reconciliação com a passagem do tempo.

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Dar passagem aos mais jovens, manter essa atitude de abnegação e de inscrição no tempo que passa permite enfrentar a decadência com a altivez necessária. Essa atitude de fortaleza, em geral, vem acompanhada pela curiosidade pela realidade, pelos fatos sociais e políticos, pelos acontecimentos do mundo. Diria que saber manter-se cidadão por inteiro é o grande desafio que se coloca à pessoa que envelhece.

E em que medida a literatura pode nos ajudar a lidar com ele, o envelhecimento?

A literatura encosta-nos de corpo inteiro à parede. Como qualquer arte, ela não se dirige a um aspecto humano específico, mas sim à totalidade do ser porque a subjetividade não está compartimentada. Num livro que tem um grupo de senhores como personagens e uma idosa como protagonista, a literatura coloca em evidência os elos da interdependência, a fragilidade das relações, a distância entre o amor realizado e o sonhado que é de todas as idades.

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Se a literatura ensina alguma coisa, neste caso ensina sobre os sentimentos fortes que são a perda e o sonho entrecruzados. Um livro sobre a velhice não se dirige necessariamente aos idosos, dirige-se a toda a gente. A literatura enquanto arte produz aquilo que toda a arte faz: transmite uma ideia de triunfo sobre a desordem e a matéria.

A protagonista chega a criticar a filha escritora pela sua abordagem e os personagens privilegiados em seus livros – a gente comum, humilde, angustiada. Afinal, a literatura deve extrair grandeza e beleza do que seria marginal, banal e pequeno?

Sim, claro que sim. Dona Alberti, a protagonista, tem uma visão tradicional da literatura. Alia o sucesso literário com a popularidade dos livros. Ela tem sobretudo uma visão um tanto antiquada, de quando se pensava que narrar implicava tratar de heróis e de figuras de exceção, mas esse conceito não existe mais a não ser em determinado tipo de público leitor.

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A modernidade abriu os braços a todos os níveis da existência. A beleza resulta da capacidade poética de iluminar os elementos da vida, mesmo os mais pobres e por vezes os mais sujos. Sempre me interessaram os rostos que ficam na sombra da fotografia. Retirá-los de lá, iluminá-los de perto e entrar-lhes no coração é o meu trabalho. Creio que a filha de dona Alberti pertence a esse mesmo tipo de personalidade criativa.

Em sua leitura, saímos mais misericordiosos da pandemia?

Durante a pandemia eu pensava que sim. O inimigo não era mais uma pessoa, ou uma nação ou um império, eram agentes invisíveis, vírus, seres que se multiplicam e devastam comunidades inteiras – e que nem animais são. A face da Terra quase parou de se mover. Eu pensei que, depois dessa experiência tão traumática, nós seríamos mais fraternos, ao menos para enfrentarmos, coordenados, o adversário em comum. Escrevi vários textos que refletiam essa minha esperança, mas falhei redondamente. Confesso a minha ingenuidade.

Tinham razão aqueles que defendiam que iríamos ficar mais agressivos e bélicos. Esses acertaram. As guerras sem piedade que decorrem na Europa e no Oriente Médio são a prova maior. E a falta de consideração e a indiferença que as ruas testemunham são uma prolongação. Talvez por isso a palavra “misericórdia” importe. Tenho notícia de que existem vários tipos de obras recentes que têm esse mesmo título, e nós não combinamos. É interessante, na verdade. Talvez a Terra inteira precise dessa palavra.

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