“Aprender virtude significa desaprender o vício.” A frase, do filósofo romano Sêneca, poderia ser meu mote, tantas foram as vezes que aqui falei sobre virtudes que pavimentam o caminho para o equilíbrio, a saúde e o bem-estar. A começar pela boa alimentação, etapa determinante dessa trilha. Mas o que fazer quando as escolhas alimentares são moldadas por forças além do nosso controle? Como evitar algo desenhado para minar nossa determinação sem que saibamos disso? Essa foi minha inquietação ao tomar conhecimento de um estudo recente, desenvolvido por pesquisadores do departamento de psicologia da Universidade do Kansas. Eles analisaram como, a partir dos anos 1960, grandes indústrias de tabaco, diante da crescente regulamentação de seu setor nos EUA, passaram a investir em outro ramo: o de alimentos.
O momento histórico era propício a vender alimentos industrializados. As mulheres entravam cada vez mais no mercado de trabalho. Com isso, seu tempo em casa se reduzia, e a praticidade passou a ser uma virtude. Tirar o jantar da família de uma caixa em tempo recorde parecia sedutor. Mas, no centro da mesa, estavam substâncias que, na natureza, não se encontram juntas e que, alteradas e combinadas, superestimulam nosso sistema de recompensas.
“Quando se trata de compulsões, o primeiro passo é evitar o gatilho”
Os novos líderes da indústria alimentícia americana traziam consigo anos de pesquisa sobre saborizantes e outros aditivos usados em cigarros. Um executivo vindo de um conglomerado de tabaco que adquiriu uma marca de alimentos chegou a dizer que o guardanapo era a coisa mais saudável que havia dentro das embalagens de uma linha de lanches prontos para crianças. Relatórios internos comprovam que eles estavam empenhados em criar comidas viciantes — ou “hiperpalatáveis”, no dizer dos cientistas. A tônica das apresentações corporativas era a de que o negócio deles não era o de alimentos — mas o de “sabores”.
O estudo, publicado na revista Addiction, ainda relacionou as aquisições no ramo alimentício ao crescimento de taxas de obesidade (e, portanto, dos males de saúde a ela associados) nos Estados Unidos.
Os pesquisadores também perceberam que os produtos desenvolvidos “sob nova direção” eram mais carregados em gordura, sódio e carboidrato em graus viciantes do que aqueles criados por empresas que não tinham a ver com marcas do tabaco. Mesmo se parte delas depois deixou o ramo de alimentação, aparentemente seus ensinamentos o moldaram para sempre. Hoje, estima-se que 68% dos alimentos americanos sejam hiperpalatáveis. Antes de se deixar abater pelo tamanho do fenômeno, pense comigo: conhecimento é poder. Ter consciência dessas decisões corporativas de outra época nos permite pensar melhor antes de abrir um pacote que diz, em tom jocoso, que não dá para parar de comer o que está ali dentro.
Quando se trata de compulsões, o primeiro passo é evitar o gatilho. O segundo é lembrar que existem recompensas, maiores do que as promovidas por nossas papilas gustativas, em vencer um mau hábito. Não sou só eu quem diz. Recorro novamente a Sêneca: “A mente deve, portanto, ser forçada a começar; daí em diante, o remédio não é amargo; pois, assim que nos cura, começa a dar prazer”.
Publicado em VEJA de 20 de outubro de 2023, edição nº 2864