
Às vezes alguns termos técnicos escapam do universo restrito ao qual pertencem e passam a ser usados por leigos. É o caso recente de “semaglutídeos”. Algum tempo atrás, provavelmente apenas os profissionais da área de saúde sabiam do que se tratava. Hoje, porém, o palavrão já é tópico trivial de conversas casuais, como se as pessoas estivessem falando sobre a mais recente série na televisão. Todos parecem saber que os tais semaglutídeos são uma substância semelhante ao hormônio produzido por nosso organismo que estimula a secreção de insulina.
O principal responsável pela disseminação desse conhecimento é o Ozempic, a droga que, pensada para tratar diabetes, tem feito sucesso como medicamento para perder peso em pouco tempo. O Ozempic não está sozinho. Fazem-lhe companhia marcas como Rybelsus, Saxenda, Trulicity, Wegovy, Mounjaro — uma verdadeira sopa de letrinhas que parecem formar uma única palavra: emagreça. Os resultados até aqui impressionam. Pesquisas mostram que as pessoas que se submetem a tratamentos com base nessa medicação perdem peso rápido. Também deixam de consumir cerca de um terço das calorias que ingeriam antes de tomar a primeira dose. Ou seja, é uma população que troca um horizonte em que vislumbra doenças e outros males por uma perspectiva de vida mais saudável. Não admira que essas drogas estejam fazendo sucesso. Nos Estados Unidos, cerca de 15% das pessoas já experimentaram uma delas.
A popularidade dessa nova geração de remédios é tão grande que tem preocupado a indústria e o comércio de guloseimas. Recentemente, uma grande rede americana de varejo, com farmácias próprias dentro dos supermercados, disparou um alerta: consumidores dessas drogas estavam gastando menos com comida. Pelo mesmo motivo, as ações de uma multinacional de alimentos registraram queda.
“Cozinhar deverá ser um ato de resistência pacífica contra a insensibilidade do pragmatismo”
O segredo dessas drogas é que atuam como um agente que paralisa a via da dopamina, entorpecendo nossa capacidade de sentir prazer ao comer. É como se eles calassem aquela voz que nos sopra ao ouvido que não há problema em ceder à vontade e comer mais um prato de massa ou “só mais um” brigadeiro. Ora, para quem, como eu, aprecia a gastronomia, nada mais frustrante do que receber à mesa alguém que não tenha prazer em comer. Há até um quê de distópico na mera possibilidade de a comida vir a perder, no futuro, a relevância cultural e afetiva. Comida é combustível vital, sim, mas não pode ser apenas isso, sob pena de abrirmos mão de um bom naco de civilização. Se essas novas drogas tiverem o condão de reconfigurar cérebros, de maneira que a comida seja encarada apenas como fonte de sustento, nossos descendentes viverão num mundo melancólico.
Para se evitar tal extremo, cozinhar deverá ser um ato de resistência pacífica contra a insensibilidade do pragmatismo. Deverá ser, mais do que nunca, um ato de carinho que exige como única reciprocidade uma manifestação sincera de proveito daquele momento sublime. A necessária busca do equilíbrio da vida não deve ser incompatível com o deleite da refeição preparada com esmero.
Publicado em VEJA de 3 de novembro de 2023, edição nº 2866