O que o SUS pode ensinar aos EUA
As soluções para sistemas de saúde devem nascer num redesenho dos modelos de assistência

Encerrado o processo eleitoral americano, vimos novamente o debate da saúde ser aquecido. Será que algo vai mudar com a eleição de Biden? Bom lembrar que ele era o vice-presidente quando Barack Obama implementou uma das mais importantes reformas de saúde do sistema americano e coube a ele articular o processo político com o Congresso.
O Affordable Care Act (ACA), ou “Obamacare”, é uma lei federal dos Estados Unidos sancionada por Obama em 23 de março de 2010. Com a “Lei de Reconciliação da Saúde e Educação”, se tornou o maior projeto de mudança no sistema de saúde americano desde que os programas Medicare e Medicaid entraram em vigor, em 1965.
Fato é que, sendo um programa que visava integrar e melhorar a qualidade dos sistemas de saúde dos americanos, passados dez anos muito pouco conseguiu fazer. A escala de custos segue, a segurança ainda demonstra uma série de inconformidades e erros e a satisfação dos pacientes é baixa.
A essência do Affordable Care Act é basicamente controlar os preços dos planos de saúde e estender os planos de seguro públicos e privados a uma parcela maior da população. Os mecanismos de implementação vão desde a obrigatoriedade em adquirir o seguro até o subsídio completo do serviço – para que até os mais pobres possam ter.
O debate que surge é justamente o contraposição de uma estratégia liberal a uma estratégia intervencionista – pano de fundo para amplos debates de natureza econômico-financeira. Mas será que o encaminhamento de um direito social como a saúde deve passar antes por uma análise que leve em consideração pontos desta natureza? A meu ver, não seria o melhor ponto de partida. Mas, sem dúvida, ele é fundamental – mesmo essencial.
Independentemente de qualquer marco constitucional, a saúde é um direito, e não posso imaginar qualquer sociedade que não o garanta, ao lado de educação, segurança, alimentação e habitação. Entretanto, esta garantia dos EUA toma quase 20% do seu PIB (Produto Interno Bruto), e apesar de seus reflexos positivos em empregos, desenvolvimento de habilidades e geração do conhecimento, não é sustentável nos patamares atuais e nos desdobramentos futuros.
O ponto que quero levantar é que as soluções para sistemas de saúde devem nascer num redesenho dos modelos de assistência, e não na garantia de acesso a seguros e de mais recursos financeiros. A saúde não é mero objeto de modelagens econômicas mais ou menos intervencionistas, de regulações mais amplas ou mais restritas. É, sim, objeto de um modelo assistencial focado dentro de um hospital e na alta complexidade.
O fato é que tudo gira em torno de deixar caro mesmo aquilo que não é caro. O que deveríamos defender são atendimentos ambulatoriais, atenção primária com coordenações de cuidado, integração ao mundo digital, avanços na utilização da assim chamada medicina personalizada.
Queremos criar acesso e desperdiçar ainda mais dinheiro incentivando práticas ruins que pouco agregam em termos de qualidade e valor para uma sociedade? Qualidade é justamente o que está sendo pleiteado pelos consumidores que de verdade querem ter acesso. Querem cuidar de sua saúde, mas sem comprometer seus orçamentos individuais e coletivos com uma medicina ruim e cara.
Fosse dada a mim a oportunidade de redesenhar um sistema e a opção de escolher qual seria o melhor ponto de partida – o sistema americano ou o sistema brasileiro –, acreditem: optaria por melhorar o nosso Sistema Único de Saúde (SUS). Sua natureza é atender a um direito social. Ele cresceu apoiado em programas de saúde da família que são muito importantes – que têm, é verdade, limitações devidas às dimensões continentais do Brasil, mas é apoiado em estratégias, a meu ver, mais sólidas de natureza ambulatorial.
Por aqui, sim, faltam recursos financeiros – mas a carência não é tanta assim. Certamente com bom investimento em medicina digital, facilmente atingiríamos uma dimensão muito mais ampla e muito mais segura.