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Claudio Lottenberg

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Mestre e doutor em Oftalmologia pela Escola Paulista de Medicina (Unifesp), é presidente institucional do Instituto Coalizão Saúde e do conselho do Hospital Albert Einstein

A inteligência artificial afetará nossas relações interpessoais?

'Intimidade artificial' pode soar como uma forte contradição – mas deve se tornar cada vez mais comum

Por Claudio Lottenberg
25 abr 2023, 09h44

A palavra “artificial” despertará em cada um de nós uma reação pessoal e específica, baseada em vivências e memórias únicas. Mas há uma certa reação geral que pode-se dizer negativa.

O contraste imediato é com a noção de “natural”, que seria desde sempre preferível – e ainda mais assim no contexto das relações humanas. Relações “artificiais” soam, antes de tudo, falsas, quase impróprias. Parece formar um par bem estranho com o conceito de “intimidade”: em relações íntimas, artificialidade pode ser encarada basicamente como uma traição, algo insuportável. “Intimidade artificial” cria um oxímoro – uma forma mais radical de paradoxo, a partir da junção de termos fortemente contrários (tão bem exemplificado com o “doce lamento” de Shakespeare em “Romeu e Julieta”).

Mas, contrastante e contraditório como possa parecer, eis que esta é mais uma novidade comportamental com que conviver.

E porque a expressão carrega uma óbvia semelhança com outra, bem mais familiar – “inteligência artificial” –, ela logo é associada ao universo da tecnologia. E não espanta que isso aconteça: os smartphones e as redes sociais prendem os olhos das pessoas cada vez mais tempo nas telas. Facebook, Instagram e inúmeros outros aplicativos são vitrines em que se acompanha o que outras pessoas fazem, de viagens a refeições. Algumas fazem confissões aos prantos, outras comemoram alguma coisa aos risos. Experimentam roupas, apresentam os pets, mostram o que compraram – enfim, fazem coisas que talvez se fizesse com amigos, em pessoa.

Mas cada dia mais diminuem as defesas e restrições à incorporação da tecnologia às nossas vidas, em usos que poucos imaginariam possíveis há até uns 20 ou 30 anos. A psicoterapeuta belgo-americana Esther Perel ressaltou recentemente, no evento de tecnologia e inovação SXSW deste ano, que a busca pela perene conectividade pode muito bem ser uma forma de mascarar uma solidão cada vez mais profunda. Uma face dessa solidão já era bem notória: a competição por “likes”, que se tornou uma medida de autoestima.

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Outra, que a “intimidade artificial” agora expõe, é a de que a busca por contato próximo, que permita à pessoa “abrir seu coração”, por assim dizer, não desaparece. Cada vez mais pressionados por tempo, compromissos, tarefas, com o trabalho cada vez mais sem horas de começo ou fim, não resta muito para partilhar momentos com alguém. Usar apps e dispositivos é o que se pode fazer para canalizar essa necessidade.

Talvez a única intimidade que reste às gerações futuras vá ser a desse tipo. Ou talvez venha a ser uma forma que encontrará por fim sua validação. A nós, de uma ou duas gerações passadas, isso inegavelmente parecerá uma perda, mas isso porque essa forma de se relacionar inevitavelmente será posta em comparação – e a intimidade “natural” sempre sairá melhor na foto. Mas no futuro, jovens a quem relacionamentos digitais serão apenas normais, e não mais uma novidade, talvez vivam essa intimidade artificial (“postiça”, alguns poderiam arriscar) sem qualquer problema.

Fica, no entanto, aberta uma nova avenida de debates para filósofos, psicólogos, psicoterapeutas, neurocientistas e outros especialistas avaliar que efeitos essa intimidade natural, ou pelo menos sua equiparação à forma mais orgânica, poderá ter sobre a mente.

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Nesse sentido, o filme “Blade Runner” (1982) coloca uma série de questões filosóficas interessantes, sob a capa da ficção científica. São formas artificiais de vida às quais são dadas memórias implantadas; ao contrário dos seres humanos, esses replicantes (como são chamados) sabem quanto tempo suas “vidas” duram: 4 anos. Artificiais como são, desejam que suas vidas sejam “naturais” – nos relacionamentos inclusive. Interessante que o futuro em que o filme se passa é 2019: já estamos em 2023 e replicantes ainda não estão no horizonte. Mas os humanos “naturais” cada vez mais recorrem à “artificialização” da vida. Um desdobramento dos mais recentes é a manifestação de jovens nas redes sociais a respeito de usar o ChatGPT como “terapeuta”: temendo serem julgados, eles optariam pela ferramenta, que os “ouviria” sem fazer isso.

Nem é preciso ir muito longe com argumentação para afirmar a impropriedade desse uso – não só porque não substitui o contato com um médico especializado como porque o risco, sempre presente, é o da pessoa só ter como resposta o que deseja. Mas é inegável que há uma ânsia aí embutida por ter quem ouça o que de mais profundo a pessoa carrega dentro de si. Também é preciso lembrar que vivemos vidas digitais há bem pouco tempo. Muito (tudo?) que há de digital e tecnológico neste primeiro quarto do século 21 estará completamente obsoleto quando chegarmos ao fim do segundo quarto. Até lá, teremos adquirido uma nova vivência com a vida digital. E aí, talvez intimidades orgânicas ou artificiais não mais se diferenciem.

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