De quem é esse jegue? — como a cidade de Apodi (RN) tem lidado com centenas de animais abandonados vagando perigosamente pelas estradas
Na semana passada, cerca de 150 convidados se reuniram numa churrascaria em Apodi, cidade de 36 mil habitantes no oeste do estado do Rio Grande do Norte, para um banquete incomum na região. Embora os cortes de carne se parecessem bastante com os bovinos –fraldinha, maminha, alcatra e contrafilé estavam entre os tipos preparados–, nenhum […]
Na semana passada, cerca de 150 convidados se reuniram numa churrascaria em Apodi, cidade de 36 mil habitantes no oeste do estado do Rio Grande do Norte, para um banquete incomum na região. Embora os cortes de carne se parecessem bastante com os bovinos –fraldinha, maminha, alcatra e contrafilé estavam entre os tipos preparados–, nenhum boi fora abatido para o evento, e sim dois jegues. Historicamente, o animal é parte do dia a dia dos nordestinos assim como a estiagem, a tapioca e o forró. Em uma de suas canções, Luiz Gonzaga define-o como o maior desenvolvimentista do sertão, graças à sua força e resistência para o transporte de carga e de pessoas. Os versos, em que o jumento é chamado de irmão, são da década de 1970, quando este era indispensável na lida diária.
Hoje, passados quarenta anos, é difícil enumerar tarefas que ainda dependam de um jegue para executá-las. Buscar água no açude não é mais preciso, porque a maioria dos municípios tem água encanada. Trazer lenha para cozinhar também não é mais necessário, graças à oferta de botijões de gás que abastecem os fogões. E, no transporte de pessoas, foi ultrapassado pelos veículos motorizados, especialmente as motos. Em 2001, havia cinco motos para cada cem nordestinos. Em 2012, a taxa já havia mais do que dobrado, para onze motos por cada cem habitantes, num total de 5 milhões desses veículos. Enquanto isso, a população de asininos decaiu. Do 1,5 milhão existente na época da canção de Gonzaga, existem hoje 902 mil, segundo dados do IBGE.
“É triste dizer isso, mas eles viraram uma praga”, diz o promotor Silvio Ricardo Brito, da 2ª promotoria de Apodi. Sem muita função e demandando gastos de manutenção por um longo período (chegam a viver quarenta anos), os animais são abandonados pelos donos e ficam vagando entre os municípios. Ao cruzar as estradas da região, causam acidentes frequentes, muitos deles fatais. Nos últimos três anos, o promotor calcula que mais de cem pessoas tenham se ferido gravemente ou morrido ao tentar desviar de jumentos nas rodovias. Dos diversos capotamentos sem causa comprovada, a principal suspeita é o aparecimento de asnos na pista.
Para evitar novas vítimas, uma audiência pública ocorrida no final do ano passado determinou que as equipes das polícias rodoviárias estaduais e federais atuantes nas cidades próximas à divisa do Rio Grande do Norte e Ceará passassem a recolher esses animais e levá-los para uma associação de preservação. “Gado sempre foi recolhido, porque os donos aparecem logo para reclamá-los, mas os jegues ficavam largados lá”, afirma o promotor. A tal associação é uma área improvisada à beira da BR 405 pertencente ao fazendeiro Eribaldo Gomes Nobre.
Apelidado de Jesus, por conta dos cabelos abaulados que tinha quando menino, ele tem vivido à espera de um milagre. Os duzentos bichos que esperava receber viraram seiscentos. “Muitos chegam com a perna quebrada, orelha cortada ou doentes”, diz ele, que já enterrou setenta deles nos últimos quatro meses. Alguns foram deixados na porta de sua propriedade anonimamente, abandonados por quem encontrou uma boa oportunidade de desfazer-se deles e dos gastos que demandam. Com a compra de água, sal mineralizado, vermífugo e alimento, cada um deles consome 1,50 real por dia, que no final do mês somam 27 mil reais para o rebanho de Apodi. Exceto por alguma ajuda da promotoria, que encaminha o valor de penas pecuniárias, é o fazendeiro quem arca com a despesa, lançando mão de seus ganhos nas plantações de milho e de sorgo e nas criações de gado e ovelha. Jesus é renitente em boas ações do tipo. Em suas terras estão abrigados duzentos gatos e duzentos cães. Nos anos 1980, manteve uma escola e contribuiu para a recuperação de menores infratores. Adotou uma menina, cujos pais eram alcoólatras, que cria com seus três filhos.
Para ajudar a desempacar a situação dos jegues, o promotor Brito sugeriu um almoço preparado a base da carne do animal, na tentativa de dar um destino aos que vagam sem dono. Quatro diretores de cadeias públicas compareceram ao banquete, dispostos a adotar a iguaria no cardápio dos presos. “A composição nutricional é bem parecida com a da carne bovina, mas nossa falta de hábito em consumi-la se sobrepõe a possíveis benefícios”, diz a nutricionista da Faculdade de Ciências Aplicadas da Unicamp Marciane Milanski. De acordo com o professor do departamento de Ciências Animais de Ufersa (Universidade Federal Rural do Semi-Árido) Jean Berg Alves da Silva, são comuns apreensões de carne de jumento vendidas de forma fraudulenta como carne bovina, a exemplo do escândalo da comercialização de carne de cavalo na Europa que veio à tona no ano passado.
Para os defensores da iniciativa, uma população acostumada a comer tatu, cotia e paca e que tem no ovo sua principal fonte de proteína poderia se beneficiar de incorporar essa novidade ao cardápio – cada abate rende entre 60 e 100 quilos de carne rica em proteína e com pouca gordura. Os contrários à medida, dizem tratar-se de um ser sagrado que merecia um fim melhor. Convidado de honra para o churrasco dos jegues, Jesus decidiu não comparecer. “Não tenho coragem nem de abrir a minha porteira para eles irem embora, que dirá comê-los”, diz. Por ora, o rebanho segue em suas mãos.
Com BELA MEGALE
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