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Balanço Social

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Um olhar diferente para as desigualdades do Brasil
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Racismo persiste nos serviços de saúde no Brasil

Praticamente todos os indicadores relacionados à saúde são piores nas mulheres negras, especialmente os relacionados ao pré-natal

Por Andréia Peres 20 ago 2024, 08h30

Em 2023, editei um livro sobre o que adolescentes e jovens que vivem com HIV/aids pensam sobre o acesso aos serviços de saúde no Brasil, o Nós somos a resposta. Iniciativa do Fundo das Nações Unidas para a Infância (Unicef), a pesquisa, publicada em dezembro, foi realizada pela Oppen Social, em parceria com o Programa Conjunto das Nações Unidas sobre HIV/aids (Unaids), com apoio da Rede Nacional de Adolescentes e Jovens Vivendo com HIV/aids (RNAJVHA), e traz dados surpreendentes. Entre eles, relatos de racismo no serviço de saúde, especialmente em relação à mulher negra, e de diferença de atendimento pelo mesmo profissional, acarretada, segundo os adolescentes e jovens ouvidos nas rodas de conversa, pela forma como o paciente estava vestido, pela sua cor-raça, pela sua identidade de gênero ou mesmo por sua forma de falar.

A publicação conta, por exemplo, que uma jovem negra vivendo com HIV relatou em uma das rodas de conversa que sentiu dores insuportáveis ao tentar fazer a inserção de DIU em uma Unidade Básica de Saúde (UBS), percebendo que as profissionais que a atendiam não estavam sendo cuidadosas com o procedimento. Essa jovem relacionou a situação ao racismo nos serviços de saúde, pois afirma que há uma compreensão de que a “mulher negra aguenta a dor”.

Segundo o livro Números da discriminação racial: desenvolvimento humano, equidade e políticas públicas (Editora Jandaíra, 2023), acesso e discriminação nos serviços de saúde são dois temas cruciais para as políticas públicas de saúde e objetos em constante debate. A própria Política Nacional de Saúde Integral da População Negra (PNSIPN) reconhece o racismo como um determinante social da saúde e como uma barreira de acesso.

“O pré-natal deixa muito claro a existência desse racismo estrutural”, alerta Daniela Tafner, em entrevista à coluna. Doutora em enfermagem pela Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC), Daniela participou da primeira turma de Estudos Afro-Latino Americanos do Afro-Latin American Research Institute (Alari), da Universidade Harvard, e hoje é professora convidada do instituto.

70% DAS CRIANÇAS QUE NASCEM COM SÍFILIS CONGÊNITA SÃO DE MULHERES NEGRAS

Os dados não deixam mesmo dúvidas. Apesar de o uso do Sistema Único de Saúde (SUS) ser praticamente igual entre brancas e negras, 70% das crianças que nascem com sífilis congênita (transmitida durante a gestação) são de mulheres negras. “Teoricamente, todas as mulheres teriam que ser testadas, medicadas e tratadas e o que temos é uma disparidade gigante”, lamenta Daniela. Segundo ela, essa disparidade não se justifica apenas pelas questões econômicas ou pela falta de escolaridade dessa mulher. “Na hora que essa mulher chega na minha frente, eu, como profissional de saúde, escolho fazer o teste ou não, proteger ou não essa criança de sífilis”, relata.

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De forma geral, o Brasil tem melhorado muito a inserção de mulheres no pré-natal. O número de gestantes com pelo menos seis consultas, preconizado pelo Ministério da Saúde, subiu de 60,6%, em 2010, para 73,1%, em 2022. Apesar de o maior aumento ter sido registrado entre as mulheres pretas e pardas – 22,6% e 19,5%, respectivamente –, a diferença em relação às brancas continua grande: 80% (brancas) ante 67,1% (pretas e pardas). “Por mais que tenhamos melhorado, essa população, que ainda é a mais vulnerável, continua não conseguindo ter acesso a esse serviço”, aponta a especialista.

VIOLÊNCIAS OBSTÉTRICAS OCORREM TRÊS VEZES MAIS NA MULHER NEGRA

Segundo ela, praticamente todos os indicadores são piores para mulheres negras. “Na maternidade, 34% das adolescentes negras não tiveram direito a acompanhante, que é uma lei, ante 19% das meninas brancas”, relata Daniela. A morte de mães pretas é duas vezes maior que a de brancas.

Em 2022, o número de mortes maternas foi de 46,56 para cada 100 mil nascidos vivos nas brancas e 100,38 para cada 100 mil nascidos vivos nas pretas. No caso das pardas, a incidência é de 50,36 mortes para cada 100 mil nascidos vivos. “Vale lembrar que o Brasil assumiu uma meta junto às Nações Unidas de redução para no máximo 30 mortes até 2030”, recorda a especialista, acrescentando que as causas da mortalidade materna são doenças que poderiam ser completamente controladas, como a hipertensão e a pré-eclâmpsia.

Os dados de violência obstétrica e de peregrinação de gestantes no momento do parto também são piores entre as negras. “Cerca de 20% das mulheres pardas e 18,7% das pretas tiveram que peregrinar para conseguir atendimento médico ante 14% das brancas. Já as violências obstétricas ocorrem três vezes mais na mulher negra do que na branca”, alerta Daniela Tafner. “Historicamente, criou-se um conceito de que a mulher negra é resistente, não precisa de anestesia.”

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IMPACTO NA CRIANÇA TAMBÉM É GRANDE

O impacto dessa discriminação na criança também é grande. “Uma criança negra cuja mãe não teve um bom acompanhamento durante seu processo de desenvolvimento já vai estar mais exposta e susceptível a doenças como as pneumonias”, diz Daniela. “O pré-natal é muito mais do que olhar essa gestante. É dar qualidade de vida para essa criança para que ela possa vir ao mundo tendo o mínimo necessário”, afirma.

Em relação às mulheres indígenas ainda há, segundo ela, poucos dados. Publicado em abril deste ano, o estudo Desigualdades em saúde de crianças indígenas, do Núcleo Ciência pela Infância (NCPI), dá uma dimensão da iniquidade. De acordo com a publicação, três quartos das gestantes não indígenas têm acompanhamento pré-natal acima do mínimo recomendado. Entre as indígenas esse percentual não chega nem à metade.

No Brasil, as desigualdades estão sempre presentes seja lá qual for o problema – ou desafio, para os mais otimistas. Com a saúde, não é diferente, mas o impacto, como vimos, é ainda mais cruel. Para Daniela Tafner, é necessário criar elementos de inclusão dessas mulheres para que essa desigualdade não se perpetue. Isso inclui, segundo ela, uma maior integração entre o Ministério da Saúde e o Ministério da Igualdade Racial, e também uma sensibilização dos profissionais da área de saúde. “Nós nos formamos acreditando que tratamos todos de forma igual e que essas desigualdades não estão associadas a nós, que são desigualdades sociais, econômicas. Os dados, no entanto, mostram que não é bem assim. Há racismo, sim, nos serviços de saúde.”

Em As veias abertas da América Latina, o escritor uruguaio Eduardo Galeano (1940-2015) diz que “a primeira condição para modificar a realidade consiste em conhecê-la”. Tomara que ele esteja certo e que as mudanças de fato aconteçam.

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* Jornalista e diretora da Cross Content Comunicação. Há mais de três décadas escreve sobre temas como educação, direitos da infância e da adolescência, direitos da mulher e terceiro setor. Com mais de uma dezena de prêmios nacionais e internacionais, já publicou diversos livros sobre educação, trabalho infantil, violência contra a mulher e direitos humanos.

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