Projeto que dificulta aborto legal por estupro avança no Congresso
Retrocesso: Câmara dos Deputados aprovou projeto de decreto legislativo que muda atendimento a crianças e adolescentes grávidas e vítimas de estupro
Há alguns anos entrevistei uma adolescente que havia sido vítima de estupro pelo padrasto desde os 8 anos de idade. Aos 11 anos, ficou grávida. A menina alegre, que sonhava em ser médica, passou a ficar calada. Não queria mais sair de casa, nem ir para a escola. Com medo das ameaças do padrasto, nunca contou nada para ninguém. Quando a mãe descobriu, a gravidez já estava avançada e ela quase morreu no parto.
A bebê resultante do estupro foi colocada para adoção. A vítima parou de estudar, entrou em depressão e, quando me deu a entrevista, amparada por um psicólogo, desabafou que preferia ter morrido do que ter passado por isso.
A história, que na época comoveu a equipe do Hospital Pérola Byington, hoje Hospital da Mulher, em São Paulo, referência na área de atendimento às vítimas de violência sexual, não é um caso isolado no Brasil. Segundo dados do Instituto Liberta, 61,3% dos estupros no país são de crianças e adolescentes com menos de 13 anos; 79,6% deles aconteceram dentro de casa e 82,5% dos abusadores eram conhecidos da vítima. Ou seja, o perigo mora literalmente ao lado ou mesmo dentro de casa.
Lembrei desse caso trágico quando, na semana passada, a Câmara dos Deputados aprovou por 317 votos a 111 um projeto de decreto legislativo, o PDL nº 3/25, que, na prática, visa tornar ainda mais difícil o acesso de meninas com menos de 14 anos vítimas de violência sexual e grávidas a serviços de aborto permitidos por lei, violentando uma vez mais essas crianças e adolescentes.
RESOLUÇÃO FOI UM DOS POUCOS AVANÇOS NESSA ÁREA
O texto derruba a resolução nº 258/24 do Conselho Nacional dos Direitos da Criança e do Adolescente (Conanda), de dezembro de 2024, que detalhou e regulamentou diretrizes de atendimento de crianças e adolescentes em casos de aborto legal.
A resolução, um dos poucos avanços que tivemos nessa área nos últimos anos, reconhece a prioridade absoluta a essas meninas no acesso ao serviço de interrupção legal da gestação “de forma mais célere possível e sem a imposição de barreiras sem previsão legal”; o sigilo e o atendimento seguro e humanizado de saúde.
Considera, entre outras coisas, que a interrupção da gravidez nesses casos não depende do boletim de ocorrência policial ou de decisão judicial.
A LOTERIA GEOGRÁFICA
“Ao sustar a resolução do Conanda, que padroniza fluxos de acolhimento e reduz revitimização, o país volta a um cenário de ‘loteria geográfica’, em que o acesso [ao aborto legal] de uma menina vítima de estupro depende do município, do plantão e do temor jurídico do profissional”, alerta Lucas José Ramos Lopes, secretário executivo da Coalizão Brasileira pelo Fim da Violência contra Crianças e Adolescentes, em entrevista à coluna. “O PDL nº 3/25 não reabre a lei. Ele desorganiza a operação”, resume.
Um cenário que, segundo ele, tende a ampliar a judicialização, gerar custos adicionais ao SUS e aos conselhos tutelares e, sobretudo, criar insegurança para equipes que hoje atuam com diretrizes claras do próprio Sistema de Garantia de Direitos. “O debate precisa permanecer técnico e preservar a previsibilidade dos protocolos e o interesse superior da criança”, defende.
Vale lembrar que pela lei qualquer relação sexual com criança ou adolescente com menos de 14 anos configura estupro. De acordo com o Relatório Anual Socioeconômico da Mulher 2025, divulgado em março pelo Ministério das Mulheres, em dez anos (2013-2023), o Brasil teve 232 mil nascimentos em gestações de meninas de até 14 anos.
De forma geral, o chamado estupro de vulnerável atinge desproporcionalmente as meninas negras e indígenas, segundo estudo da Rede Feminista de Saúde, divulgado no final de 2024, que já citei aqui na coluna. Dados do Cadastro Nacional de Estabelecimentos de Saúde, do Ministério da Saúde, dão conta de que o serviço de interrupção legal da gestação é oferecido somente em 2% dos municípios.
Na prática, hoje, mesmo com a vigência da resolução do Conanda, ainda estamos muito longe de garantir o direito ao aborto legal a milhares de meninas vítimas de violência sexual.
Infelizmente, em vez de avançarmos, o Congresso tem pautado retrocessos enormes nessa área. O texto PDL Nº 3/25 ainda precisa ser votado pelo Senado. Criança não é mãe. Estuprador não é pai. Nunca é demais lembrar que violência sexual é crime e cabe ao Estado apoiar essas meninas e não revitimizá-las.
* Jornalista e diretora da Cross Content Comunicação. Há mais de três décadas escreve sobre temas como educação, direitos da infância e da adolescência, direitos da mulher e terceiro setor. Com mais de uma dezena de prêmios nacionais e internacionais, já publicou diversos livros sobre educação, trabalho infantil, violência contra a mulher e direitos humanos. Siga a colunista no Instagram.
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