Mau exemplo: cidade-sede da COP30 é hoje a 8ª pior do Brasil em saneamento
Cenário da maior conferência ambiental do planeta, Belém está há uma década entre as 20 piores cidades no Ranking do Saneamento do Instituto Trata Brasil

Faltam pouco mais de 200 dias para a COP30, o maior evento ambiental do planeta. No coração da Amazônia, Belém, sede da COP30, seria o cenário perfeito para a conferência se não fosse por uma contradição brutal: há uma década, a cidade tem se mantido como uma das 20 piores do país no Ranking do Saneamento do Instituto Trata Brasil (ITB).
Realizado pelo ITB, em parceria com a GO Associados, o Ranking do Saneamento tem foco nos 100 municípios mais populosos do Brasil. Produzido desde 2009, ele leva em consideração indicadores do Sistema Nacional de Informações sobre Saneamento (SNIS), publicado pelo Ministério das Cidades.
“Apesar de ter uma população boa com acesso à água tratada (95,5%), o índice de coleta de esgoto de Belém é de 19,9% e o de tratamento de esgoto é de apenas 2,4%”, diz Luana Siewert Pretto, presidente-executiva do Instituto Trata Brasil, em entrevista a esta coluna.
“Falta priorização para coleta e tratamento de esgoto. Culturalmente, não se entendeu que isso era relevante e, politicamente, não houve, ao longo do tempo, vontade de fazer isso acontecer”, lamenta a especialista.
Um descaso histórico comprovado pelos baixos percentuais de cobertura e também pela falta de investimento em saneamento básico. Segundo dados do Instituto Trata Brasil, Belém investe, em média, R$ 36 por ano por habitante, o equivalente a cerca de quatro cafezinhos expressos e um pouco mais de 10% do que deveria ser investido.
Segundo o Plano Nacional de Saneamento Básico (Plansab), para universalizarmos o acesso ao saneamento básico até 2033 precisaríamos investir R$ 231,09 por ano por habitante. Um patamar ainda muito longe de ser alcançado pela maioria das cidades brasileiras. De acordo com o Ranking do Saneamento 2024, a média do investimento per capita entre as 100 maiores cidades é de R$ 138,68.
FALTA DE SANEAMENTO COLOCA A SAÚDE DO BRASILEIRO EM RISCO E AGRAVA A DESIGUALDADE DE GÊNERO
As consequências não tardam a aparecer. Lançado em março, um estudo do Trata Brasil sobre o impacto da falta de saneamento básico para a saúde da população mostrou que no ano passado houve 35 mil internações na Região Norte por doenças relacionadas ao saneamento ambiental inadequado. Mais da metade delas (18.984) ocorreram no Pará e grande parte dessas internações foi por doenças de transmissão feco-oral. Doenças como diarreia, cólera, salmeonelose, hepatite A e febre tifoide, bem características da falta de saneamento.
Como sempre, os que mais sofrem com essas doenças são os mais vulneráveis: crianças de 0 a 4 anos, idosos, mulheres, pardos, amarelos e indígenas. “O impacto é muito grande, principalmente nas crianças”, diz Luana Pretto.
Dos 0 aos 4 anos de idade há um desenvolvimento cerebral intenso. Uma incidência maior de doenças como diarreia, hepatite, cólera e salmoneloses nessa fase pode trazer prejuízos importantes para o desenvolvimento dos pequenos e impactos ao longo da vida.
A Região Norte registrou 717 óbitos em 2023 por doenças relacionadas ao saneamento ambiental inadequado. O Pará foi responsável pelo maior número de mortes na região (270), o que correspondeu a 2,3% do total nacional.
Além das vidas perdidas, a falta de saneamento impacta no desenvolvimento dos estados, das cidades e do país como um todo. “Gera uma menor escolaridade média e uma menor renda média futura que compromete toda uma geração”, lamenta a especialista.
A falta de saneamento básico agrava ainda mais a desigualdade de gênero. Mesmo quando não são atingidas por essas doenças, as mulheres são, geralmente, as responsáveis (muitas vezes, sozinhas) pelas crianças, um dos principais grupos mais afetados por essas doenças. Segundo o estudo, cada episódio de diarreia faz com que o adulto ou a criança se afaste 2,6 dias das suas atividades.
Em 2024, o Brasil registrou um total de 70 mil internações por doenças como essa entre crianças de 0 a 4 anos de idade, o que representou 20% do total.
Não é à toa que saneamento é a dimensão que mais impacta na pobreza multidimensional na infância e na adolescência no Brasil. Segundo o último relatório do Unicef, publicado em janeiro, 38% das crianças e adolescentes tiveram alguma privação nessa área, em 2023.
Há ainda um custo elevado de internação. Na Região Norte, as despesas com internação por conta dessas doenças foram de R$14,1 milhões em 2024. O Pará corresponde a mais da metade desse custo (R$7,3 milhões).
A situação de Belém deve servir para chamar a atenção do mundo para o grave problema de saneamento no Brasil. A falta de acesso à água potável impacta quase 32 milhões de pessoas e cerca de 90 milhões de brasileiros não possuem acesso à coleta de esgoto. No ano passado, o país registrou 344 mil internações por doenças relacionadas a ausência de saneamento adequado. Crianças e idosos representaram quase metade dessas internações (43,5%).
A boa notícia é que, segundo o estudo do Trata Brasil, a chegada do saneamento básico deve reduzir em 69,1% a taxa de internações após 36 meses de intervenção. Estamos atrasados para a COP 30, mas quanto antes começarmos, melhor. Motivos realmente não faltam.
* Jornalista e diretora da Cross Content Comunicação. Há mais de três décadas escreve sobre temas como educação, direitos da infância e da adolescência, direitos da mulher e terceiro setor. Com mais de uma dezena de prêmios nacionais e internacionais, já publicou diversos livros sobre educação, trabalho infantil, violência contra a mulher e direitos humanos. Siga a colunista no Instagram.