A cada hora, 5 crianças são vítimas de violência sexual no Brasil
Especialista critica a falta de prioridade para o tema no país e aposta na prevenção para mudar esse quadro

No dia 29 de maio, vou fazer uma palestra no Fórum de Debates do Centro de Referência às Vítimas de Violência (CNRVV) do Instituto Sedes Sapientiae. O evento é gratuito, com transmissão via YouTube no canal do Instituto. Há muito tempo participo, com prazer, deste fórum, pois acredito que informação é fundamental para romper o ciclo da violência sexual que atinge milhares de crianças e adolescentes no Brasil.
“Quando a gente fala de violência sexual infantil, a nossa sociedade só olha para o aspecto punitivo. Quer aumentar a pena, punir mais seriamente o criminoso. Claro que punir é importante, mas não podemos continuar com esse olhar só. Precisamos focar na prevenção para que essa violência não aconteça mais”, diz em entrevista à coluna Luciana Temer, diretora presidente do Instituto Liberta, ONG que trabalha pelo fim de todas as violências sexuais contra crianças e adolescentes por meio da comunicação e da conscientização.
A meta do Instituto é fazer o Brasil falar sobre o assunto, o que vem conseguindo. Prova disso é que, segundo o Ministério dos Direitos Humanos e da Cidadania, denúncias de abuso e exploração sexual infantil cresceram 195% nos últimos quatro anos.
Recentemente, o instituto foi uma das fontes consultadas na realização do filme Manas, de Marianna Brennand, que está em cartaz nos cinemas, e já ganhou 20 prêmios em festivais ao redor do mundo. Inspirado em histórias reais, o filme aborda com delicadeza – e propriedade — esse tema.
Luciana lembra que em uma das cenas, as crianças estão na escola e o livro que folheiam aparece grampeado para que elas não vejam o corpo humano. Tabu na sala de aula, a violência sexual acontece, no entanto, dentro e fora de casa tanto no filme quanto na vida real.
PREVENÇÃO É FUNDAMENTAL
“Os adultos precisam entender que violência é essa e como ela acontece e as crianças e adolescentes devem ser verdadeiramente empoderados para compreender situações que acontecem com eles e poderem dizer não”, afirma ela, que lançou um curso gratuito, o Trilha de conhecimento para a proteção da criança e do adolescente, e defende que as escolas têm obrigação, sim, de falar sobre o tema.
“O termo educação sexual gera muita resistência porque foram criados muitos fantasmas em torno disso”, afirma Luciana. “Por isso, não temos usado mais esse termo. Estamos falando da importância de se abordar a prevenção à violência sexual com crianças pequenas e sexualidade saudável e responsável com adolescentes”, explica. Segundo ela, esse é um caminho que precisa ser construído no Brasil.
É bom lembrar que 65% dos estupros acontecem dentro de casa por parentes ou pessoas próximas na maioria dos casos. Pesquisa do Datafolha em parceria com o Instituto Liberta mostrou que apenas 11% das pessoas denunciaram e 26% tiveram coragem de contar para alguém. O silêncio que cerca o assunto é cúmplice dessa violência.
Para Luciana, é importante fazer a sociedade compreender que violência contra crianças e adolescentes é uma prioridade. “O gestor público não trata isso como prioridade e a sociedade não demanda isso dele”, alerta. Para que isso de fato aconteça, Luciana acredita que é importante conscientizar sobre o tema.
ACESSO À PORNOGRAFIA PRECISA DE REGULAMENTAÇÃO COM URGÊNCIA
A especialista também critica a falta de uma proibição efetiva de acesso de crianças e adolescentes à pornografia, além de chamar a atenção para outra aberração: a existência de chamadas bizarras como “padrasto se divertindo com enteada” em sites pornográficos. “Isso é inadmissível. Não importa se é ficcional ou não. Quando é que a gente vai assumir as rédeas? Como não conseguimos proibir que os sites pornográficos coloquem chamadas desse tipo?”, questiona.
Luciana considera que “a pornografia é hoje um instrumento muito importante de gatilhos de violência”. “São muitas camadas que precisamos ir descascando para entender que violência é essa na essência”, diz. Pornografia é, segundo ela, uma dessas camadas e devemos cada vez mais falar sobre ela e o seu impacto na violência sexual.
“A pornografia promove o imaginário de um sexo de submissão, inclusive com crianças. Se você abrir qualquer site pornográfico e puser a palavra pai, padrasto ou professor, vai encontrar vários vídeos”, denuncia. “Não podemos permitir que isso aconteça. Precisamos desta regulamentação de acesso à pornografia. Esse é um ponto fundamental”, alerta.
CENÁRIO PREOCUPANTE
Meninas são, em geral, as principais vítimas de violência sexual. Isso, no entanto, não quer dizer que não aconteça com os meninos. Segundo o Anuário Brasileiro de Segurança Pública de 2024, o mais recente publicado, eles representam cerca de 15% das vítimas, um número que não pode ser ignorado.
“A subnotificação de casos de meninos é muito maior do que a de meninas e isso decorre do fato de sermos um país super machista”, diz Luciana Temer. “Quando um menino é abusado sexualmente por um homem, isso coloca em xeque a masculinidade dele e o silêncio é maior ainda. Já quando ele sofre violência por uma mulher, na nossa cultura ele é um sortudo e tem dificuldade para reconhecer que sofreu violência”, afirma.
Tão ou mais invisível que a violência sexual contra meninos é a violência sexual contra crianças e adolescentes com deficiência. “Há um estudo que mostra que uma criança com deficiência tem quatro vezes mais chance de ser vítima de violência sexual”, alerta a especialista. “A criança ou adolescente com deficiência fica numa situação ainda mais vulnerável pela sua condição”, destaca.
REDE DE PROTEÇÃO É FALHA
O Brasil possui uma série de marcos legais importantes para a proteção de crianças e adolescentes, como o Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA) e o Plano Nacional de Enfrentamento à Violência contra Crianças e Adolescentes.
A rede de proteção, no entanto, é falha, especialmente nas áreas mais remotas ou empobrecidas, como mostra o filme Manas. Numa das cenas, a protagonista, sem ter para onde ir, é levada pela delegada para casa de uma amiga, onde é facilmente localizada pelo seu agressor.
Segundo Luciana Temer, uma das principais evidências do descaso com que esse tema ainda é tratado no Brasil é a falta de abrigos específicos para crianças e adolescentes vítimas de violência sexual e também de apoio psicológico individualizado e de longo prazo para essas meninas e meninos. “O estado brasileiro não está compreendendo a dimensão desta violência e as suas consequências”, critica. E não faltam evidências sobre a gravidade da situação. Já está mais do que na hora de entender e atuar para mudar esse quadro.
* Jornalista e diretora da Cross Content Comunicação. Há mais de três décadas escreve sobre temas como educação, direitos da infância e da adolescência, direitos da mulher e terceiro setor. Com mais de uma dezena de prêmios nacionais e internacionais, já publicou diversos livros sobre educação, trabalho infantil, violência contra a mulher e direitos humanos. Siga a colunista no Instagram.