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Augusto Nunes

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Valentina de Botas: Que século é hoje, Brasil?

O mesmo Estado que falha miseravelmente em controlar bandidos presos também falha em proteger a população contra os bandidos soltos

Por Augusto Nunes Atualizado em 30 jul 2020, 21h04 - Publicado em 12 jan 2017, 16h37

Assisti à retrospectiva de 2016 na TV só para rever a abertura das Olimpíadas e o impeachment, o evento político mais feliz dos últimos 13 anos e indispensável, ainda que insuficiente, para a trilha da civilização. Então, as rebeliões nos presídios de Manaus e Roraima vieram lembrar que o ano é novo, mas o resto demora em ser velho: dispomos de um Estado que, incapaz de ser aquele descrito por Thomas Hobbes sem o qual a vida é “suja, pobre, brutal e curta”, fixa o primitivismo como horizonte da nação em vez de a afastar dele.

As prisões – subsolo da sociedade, a casa dos mortos e, agora, despedaçados – sempre foram tema negligenciado por governos e cidadãos; José Eduardo Cardozo preferia morrer a ir para uma delas. Ora, não precisava morrer: para evitá-las bastaria, como cidadão comum, não se envolver em crimes e, como autoridade responsável pela moralização da coisa, curar-se da omissão e da incompetência. Mas enquanto os antecessores penderam entre uma coisa e outra, Cardozo entregou-se pleno a ambas. No caso particularíssimo dos ministros petistas da justiça, eles estavam a serviço do partido, sempre a instância máxima na intersecção solitária entre o PT e o comunismo, o resto é ornamento para camuflar a única ideologia de Lula: o pós-coronelismo jeca-urbano, mais conhecido como lulismo. Dilma, ela, sim, toda encarquilhada em ideologia, continuou combatendo Hobbes, mas ao modo dela e, ainda que o governo Temer, nos seus parcos 8 meses, não tenha construído a selvageria dos presídios, está obrigado a abolir imediatamente a negligência criminosa na patrulha das fronteiras por onde a entrada de drogas e armas é tão constante quanto nas cadeias.

Os petistas que governaram por slogans ocos apostando na superficialização do debate da nossa realidade sequer dedicaram ao menos um para o sistema penitenciário, num desprezo integral pelo assunto. Governos e cidadãos se enganam quando pensam o sistema penitenciário e seus habitantes como uma espécie de Hades cuja invisibilidade significaria a imunização da sociedade. Claro que são inadmissíveis concessões como visitas íntimas; saídas aleatórias em datas comemorativas; celulares e internet que permitem aos criminosos gerirem delinquências de dentro da cadeia; e até serviços de hotelaria de que chefes de gangues usufruem pelo conluio com as autoridades, numa cópula absurda resultante na submissão destas àquelas; o auxílio-cadeia à família de condenados, enquanto às vítimas ou a familiares delas nada é concedido além da dor irremediável, nem mesmo uma visita de Eduardo Suplicy, o que chega a ser um favor, ou dos demais defensores dos direitos humanos exclusivos da bandidagem expressando a vitória de concepções maniqueístas, como as de Caio Prado Jr e de Darcy Ribeiro (os mais festejados nas redes) sobre Hobbes.

Ribeiro é lembrado nominalmente e Caio Prado ainda subjaz como mal-assombro ao pensamento acadêmico e à formação de nossos jovens, com o antiliberalismo fanático dele que, na confluência com o comunismo em que via a solução para a “decadência da sociedade burguesa” e democrática, transportou a noção maniqueísta de exploradores/maus x explorados/bonzinhos para o pensamento político, resultando, grosso modo, na noção do criminoso como produto/vítima da sociedade. Que século é hoje, Brasil?

Criminosos e sistema penitenciário são um problema em qualquer lugar, mas é  neste país-inferno, de descalabros incessantes, que as rebeliões esfregam na cara dos brasileiros, angustiados pela criminalidade cotidiana, que políticos elevam as gangues a interlocutoras, negociando com elas um apoio que só reforça aquele horizonte do Estado pré-hobbesiano. Contudo, pretender que as penitenciárias sejam depósitos degradantes de gente que, uma vez, invisível, se tornaria inexistente, é uma ilusão que ameaça a sobrevivência da própria sociedade porque não se pode ignorar o Hades latejante, o subsolo inamovível, inerente à vida em sociedade.

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O enigma é claro: bandidos têm de ficar presos, separados os mais dos menos violentos, também por sexo e por idade; devem trabalhar e estudar na cadeia; e, sobretudo, cumprir integralmente, sem regalias, mas com dignidade (porque dignifica também o conjunto da sociedade), a pena a que foram condenados, razão primeira de estarem ali. Soltar criminosos em virtude da superlotação, como querem os sem noção que ignoram o cidadão de bem, inviabiliza o cotidiano nas grandes cidades, ensina ao cidadão de bem que, da perspectiva da lei, não há diferença entre ser um cidadão de bem e não ser um cidadão de bem; e confirma o poder das gangues: basta esquartejar para soltar. Sim, a superlotação é degradante, mas, ora, senhores especialistas, Folha de S.Paulo e juízes – todos “bonzinhos” sem noção –, lidem com esse nó sem imolar o cidadão pacífico no altar das imposturas do bem: deem alguma chance a Hobbes.

É falsa, me parece, a relação excludente entre a construção de prisões e a de escolas, conforme o equívoco de Darcy Ribeiro. Afinal, escolas se justificam por si mesmas, independentemente de se construírem presídios, também necessários uma vez que uns e outras têm finalidades diferentes e de nada adianta construir escolas que não ensinam, empregando professores sem vocação nem preparo, e das quais metade dos alunos se evade no ensino médio. Feita a distinção, os pontos de contato entre o coração das trevas desvelado outra pelas gangues presidiárias, a barbárie de uma escola que não ensina e o primitivismo de uma saúde pública que não trata quem precisa dela estão no arcaico Estado brasileiro que, com seus 40 mil cargos federais de livre nomeação e sem uma reforma que instale uma burocracia pública profissionalizada, permanece à disposição do gangsterismo partidário-sindical-e-de-grandes-corporações, e não à disposição da sociedade. A Alemanha, coitadinha!, tem 4 mil cargos da mesma natureza.

Se impor a degradação nas penitenciárias brasileiras degrada também a quem as impõe ou as endossa, se tratar como coisa seres humanos – sim, os estupradores até de crianças, os traficantes, os assassinos mais cruéis e os ladrões incuráveis são seres humanos, pois só seres humanos são capazes de tantas e outras desumanidades – coisifica também a quem os trata como coisa, o que dizer dos que comemoram o pasto medonho entre as gangues? Não sei. Alguns talvez se sintam vingados pelo mal que os bandidos eventualmente lhes fizeram e não tenho lições a dar sobre como as pessoas devem sentir a dor que sentem; outros talvez comemorem o indizível porque o Estado brasileiro só lhes oferece o gozo degradante da contemplação da barbárie em vez de Justiça e segurança.

Mas é importante lembrar às muitas pessoas que comemoram o festim pavoroso e que o lamentam somente por alegada infrequência: a evisceração, a degola, a desumanização escancaram o predomínio dos presos sobre o Estado; o mesmo Estado que falha miseravelmente em controlar bandidos presos também falha em proteger a população contra os bandidos soltos; é o mesmo Estado incompetente para prestar a ela serviços públicos de qualidade, ainda que cobre muito bem para isso. Não é preciso querer bem a criminosos, mas, para a própria preservação, a sociedade precisa estar consciente de que o horror não convida à celebração, e sim a encararmos o fato de que o Brasil está sob o risco de se tornar um território sem Estado – retrocesso em que o facão não distingue entre o pescoço do bandido e o do inocente.

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