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Augusto Nunes

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Texto enviado pela comentarista Eidia

Le repos des lunettes* Ieda Dias E mais um amigo se foi. Partiu antes do combinado mas, mesmo se tivesse ficado por muito mais tempo, jamais eu poderia assimilar tanta sabedoria, tanta inteligência e curiosidade. Mais uma biblioteca que se apaga. A amizade foi crescendo devagarinho porque, quase todo ano venho aqui passar uns tempos. […]

Por Augusto Nunes Atualizado em 31 jul 2020, 12h50 - Publicado em 15 fev 2011, 20h25

Le repos des lunettes*

Ieda Dias

E mais um amigo se foi. Partiu antes do combinado mas, mesmo se tivesse ficado por muito mais tempo, jamais eu poderia assimilar tanta sabedoria, tanta inteligência e curiosidade. Mais uma biblioteca que se apaga.

A amizade foi crescendo devagarinho porque, quase todo ano venho aqui passar uns tempos. O lugar é calmo, reconfortante e revejo meus amigos queridos. Estive, ano passado, por dois meses e meio com ele e, agora em Nova York, voltando para o Brasil, não pensei duas vezes antes de pular pro lado de cá, e ficar mais um tikim, com aquele que já estava chegando ao finzinho da sua estrada, aproveitar as últimas gotas e “l’emmerder” (encher o saco dele), como ele mesmo dizia. E consegui mostrar alegria até o final. Fazê-lo rir, que era o que ele gostava.

Outro dia ele não queria comer e, eu, sacaneando, me ofereci pra fazer uma feijoada. Foi engraçado, ele puxou forças de onde não tinha mais, para falar forte:

─ Não ! Não e não ! (ele sabia que eu não tava brincando).

À mesa, sempre me sentava em frente a ele. Ele me chamava de “meu vis-à-vis” (o que tá em frente).

─ Onde está meu vis-à-vis?

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Hoje almocei em frente a uma cadeira vazia. Espero que “meu vis-à-vis” esteja dormindo em paz.

Quando invernava de nevar, de manhãzinha, assim que ele se levantava, olhava para fora e repetia como se fosse um mantra ─ Oh! Tá nevando! Que beleza! (p… da vida porque neve, pra quem mora aqui, é quiném chuva contínua pra nós. Imagine 4 meses chovendo sem parar).

Não tinha uma só pergunta que ficasse sem resposta, mas não era uma resposta qualquer. Era resposta que acrescentava. E os vários dicionários que ele tinha eram consultados com a mesma frequência que você olha pro celular durante o dia. A explicação de uma simples expressão vinha ilustrada com uma história.

Ano passado, faltando uns dois meses para o aniversário dele, ele começou a perguntar, a cada meia hora:

─ Que dia é hoje? Depois de alguns dias e várias vezes respondida a mesma pergunta, descobrimos que ele contava os dias para o aniversário. Queria completar 80 anos. E conseguiu com louvor! Quase fez 81…

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A memória do presente já não durava mais que alguns minutos e eu ria e fazia ele rir. Outras duas perguntas constantes: ─ Quantas horas são? ─ Hoje é que dia? (como se alguma das duas respostas fosse mudar o rumo da vida dele). Um dia, alguns minutos depois de ter respondido a uma dessas duas perguntas, eu perguntei séria e queria uma resposta mais séria ainda: ─ Me diz a verdade verdadeira: jura que não se lembra de ter me perguntado, meia-hora atrás, a mesma coisa?

E ele, seríssimo:

─ Juro. Eu perguntei?

─ Só 2.500 vezes hoje.

Ele riu “até” (nunca vou saber se estava me gozando).

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Às vezes, ele chegava perto e eu já ia dizendo: ─ São três e meia, hoje é quarta-feira, 5 de fevereiro e faltam x dias pro seu aniversário.

Ele ria “até”, mas dali a meia hora…

No Natal francês, eles comem, o tempo todo, uma bala muito gostosa chamada “papillote”, que vai durando até depois do Ano Novo. Parece uma bala de goma envolvida em chocolate e a embalagem é linda. Ele amava e comia quilos ─ às vezes com permissão da dona da casa, às vezes, escondido. E, quando queria comer, fazia quiném criança: me oferecia e, se eu aceitasse, ele tinha desculpa para comer outra. E eu aceitava mesmo sem vontade… rs.

À mesa, nos últimos tempos, com o apetite bem reduzido, era um divertimento só. Pra enrolar e não comer, ele inventava casos, contava histórias, lembrava-se de velhas canções, cantava, e eu não podia dar muita corda, senão apanhava da dona da casa. Como não podia o tempo todo, eu brincava de “vaca amarela” e ele ria. E eu dizia:

─ Pare de enrolar e coma, senão não tem sobremesa! (quiném a gente faz com criança) mas ele já estava pouco ligando para a sobremesa. Até o papillote já não fazia tanto sucesso.

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Eu gostava de fazer ele rir, deitando-me com ele e fingindo que aproveitava enquanto a patroa estava distraída em algum lugar. Ele riiiia…

Esta semana eu acho que se lembrou disso e me disse com dificuldade:

─ Quer se deitar aqui comigo?

No que respondi:

─ Cê ficou maluco? Não tá vendo que sua mulher tá em casa?

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Foi um dos poucos sorrisos que consegui arrancar dele. O humor continuou presente até o final.

Assim que cheguei, a mulher dele me disse:

─ Depois que você foi embora, em abril, pelo menos umas 10 vezes, ele me fez prometer que eu o levaria ao Brasil para te visitar.

Semana passada, depois de uma manhã sofrida, ele ficou olhando para a  janela com o olhar perdido, distante, e pensei que estivesse olhando para o nada, ou nada vendo. Passei a mão em frente aos olhos dele e ele disse imediatamente: ─ Tô enxergando! (com um minúsculo sorriso no canto da boca). Tentei ver se o divertia um pouco, mostrei dois dedos e perguntei:

– Quantos dedos você tá vendo? E ele : ─ 18.

Pra logo depois continuar : ─ Tô vendo o “V” da vitória.

Insisti na brincadeira e mostrei o dedo do meio. Ele fez uma careta de reprovação e deve ter pensado: “ela não me respeita mesmo. Em nenhuma situação”.

Acordou assustado há uns três dias e disse: ─ A guerra!

Tentei levantar a moral dele e perguntei:

─ Você se levantou pra ir ou tá correndo dela? Mas no final da minha frase, ele já dormia profundamente. Os mesmos medicamentos que aliviavam sua dor também o derrubavam como num nocaute. Só que, quando o nocaute chegou, já foi no 15º assalto (ele não era homem de ser derrubado tão facilmente assim).

Não deu pra você ir me encontrar no Brasil meu amigo, mas eu levo você no meu coração. Pra sempre. E pra qualquer lugar onde eu for.

*O descanso dos óculos

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