Tem um rio no meio do caminho
BRANCA NUNES Para encontrar os rios de São Paulo, é preciso olhar para o alto. São prédios, prédios, prédios. E de repente, no meio daquele concreto todo, aparece um pedaço do céu. E ali não é uma rua, não é uma avenida. É como se fosse um corredor no meio do quarteirão que vai do […]
BRANCA NUNES
Para encontrar os rios de São Paulo, é preciso olhar para o alto. São prédios, prédios, prédios. E de repente, no meio daquele concreto todo, aparece um pedaço do céu. E ali não é uma rua, não é uma avenida. É como se fosse um corredor no meio do quarteirão que vai do chão ao topo dos arranha-céus e segue até onde a vista alcança. Aparentemente, ali não há nada. Mas ali tem um rio. São Paulo esconde em seu subsolo mais de 300 rios, córregos e riachos que guardam lendas, histórias e curiosidades que ajudam a decifrar a alma da metrópole.
O Saracura é um desses rios escondidos de São Paulo. Nasce atrás do Maksoud Plaza, que já foi um dos hotéis mais glamorosos da cidade, a duas quadras da Avenida Paulista. O espigão da Paulista – primeira via asfaltada da capital – é o berço de quase todos os rios da cidade. Os que nascem do lado dos Jardins desaguam no Rio Pinheiros. Os que brotam do lado da Bela Vista desembocam no Tietê. Deste lado está a Ribeirão Preto – que apesar de ter nome de rio e de uma cidade do interior do estado, é uma rua –, onde na altura do número 529 existe um desses corredores de horizonte.
Para encontrar a nascente do Saracura (ou melhor, as nascentes, porque o rio não tem uma só nascente, tem várias. A imagem é a de uma mão: os dedos seriam as nascentes. Eles se encontram e seguem formando o braço, ou seja, o rio) é preciso seguir as curvas – outro indício de rio – da Alameda Campinas e da Rua Dr. Seng. No fim desta rua há o que os geógrafos chamam de combinação ideal: um beco, vegetação abundante, umidade e taiobas, um tipo de planta que só cresce em terrenos com água o ano inteiro inteiro (assista aqui um vídeo que ensina como encontrar uma nascente em São Paulo).
Ali, o clima é mais fresco, o ar é mais limpo, a temperatura cai alguns graus. Dá uma sensação de mundo começando, de vida em gestação. É fascinante imaginar que, apesar dos prédios em volta, do asfalto, dos muros delimitando o terreno, aquele pedacinho da cidade é exatamente daquele jeito desde muitos anos antes da chegada do homem.
A água que brota até da parede é como a dos livros escolares: insípida, inodora e incolor. Só não pode ser bebida porque o solo da cidade é contaminado pelo esgoto das casas, pela sujeira das ruas, pela poluição dos automóveis. Mas pode ser usada para muita coisa. Onofre Sabino, por exemplo, usa para lavar carros. Ele inventou um decantador que consiste em cinco bacias de alumínio ligadas por mangueiras. A primeira mangueira liga a nascente a uma das bacias. Conforme a água passa de um recipiente para outro, pequenos sedimentos, como areia, pedrinhas e folhas, vão sendo depositados no fundo até que esteja pronta para ser usada. Sabino garante que, desde 1986, quando começou, até hoje, nunca faltou água.
A duas quadras dali, na Rua Almirante Marques de Leão, motoristas de táxi também lavavam seus carros em outra nascente do Saracura. Como não havia o decantador de Onofre Sabino, uma só mangueira capturava a água de um terreno baldio e a jogava nos carros. Mas a prefeitura proibiu o lava-rápido improvisado e agora os taxistas lavam seus carros numa oficina localizada no cruzamento das ruas Una com a Cardeal Leme. A água, que antes vinha da terra, agora vem da Sabesp.
É sob a Cardeal Leme que corre o Saracura. Embora seja uma via sem declives nem aclives, quem anda de bicicleta por ali garante que nesse trecho não é preciso pedalar. É como se as águas carregassem o ciclista até desembocarem na Avenida 9 de Julho, ao lado da escola de Samba Vai-Vai.
Um dos símbolos da Vai-Vai é justamente a saracura, ave de pernas finas abundante naquela região por volta de 1920, quando o asfalto ainda não tinha engolido o ribeirão. A saracura deu nome ao córrego, aos moradores do Bexiga e virou personagem de diversos sambas, como Tradição, de Geraldo Filme:
O samba não levanta mais poeira
Asfalto hoje cobriu o nosso chão
Lembrança eu tenho da Saracura
Saudade tenho do nosso cordão.
Quem nunca viu o samba amanhecer
vai no Bexiga pra ver, vai no Bexiga pra ver.
Para ver o Saracura é preciso sair do Bexiga e caminhar até a saída do viaduto Doutor Plínio de Queirós. Nesse ponto, uma grade no asfalto da 9 de Julho permite uma espiada no rio que corre lá embaixo. De janeiro a março, a estação das chuvas, é o Saracura que vem dar uma espiada aqui em cima. Ele aparece nos jornais levando carro, gente, lixo e animais – e é quando algumas pessoas se lembram de que ali existe um rio.
Apesar do jeitão insubmisso, o Saracura não é caudaloso. Tem pouco mais de dois metros de largura. Ganha fôlego na altura da Praça da Bandeira, bem no centro de São Paulo, quando encontra o Itororó – que corre sob a Avenida 23 de Maio – e o Bixiga – que vem da Rua Japurá –, formando o Anhangabaú. Os três seguem juntos pela Rua Carlos de Souza Nazaré, ao lado da 25 de Março, até desembocarem no Tamanduateí, o rio – esse sim um riozão – que acompanha a Avenida do Estado.
Embora não seja “tamponado”, palavrão que se aplica aos rios cobertos, as muretas nas laterais fazem com que poucas pessoas saibam que naquela avenida feia e cinza corre um dos rios mais importantes da cidade. Além de São Paulo ter nascido em suas margens, o Tamanduateí era a porta de entrada da capital. Por ele navegavam os barcos que iriam atracar no porto localizado ao pé da Ladeira Porto Geral – aquela das lojas de fantasias que ficam abarrotadas na época do carnaval.
Quando o Saracura chega ao Tamanduateí, suas águas jorram tão feias e cinzentas quanto a Avenida do Estado. O esgoto das casas, a sujeira das ruas, a poluição dos automóveis, a negligência do homem. Tudo contribui para alterar aquela água que brota insípida, inodora e incolor a menos de 10 quilômetros dali. É esse líquido viscoso que desaguará no Tietê, quase em frente da ponte conhecida como estaiadinha.
O Tietê encontrará o Rio Pinheiros um pouco mais adiante, no chamado ponto zero das marginais, onde passa todo o esgoto da cidade. Ele veio boiando pelos seus dois maiores rios que, por sua vez, foram alimentados por alguns dos mais de 300 córregos e riachos que correm no subsolo da maior metrópole da América do Sul.
Trezentos é o número oficial. O geógrafo Luiz de Campos Jr. e o urbanista Roberto Bueno, idealizadores do projeto Rios e Ruas, garantem que são, no mínimo, o dobro – a bacia hidrográfica sob São Paulo teria 3.500 quilômetros de extensão. A dupla organiza explorações pela metrópole com o objetivo de caçar essas águas enterradas vivas. Uma rua sinuosa, vielas, esquinas com muitos bueiros, paredes marcadas por enchentes são alguns indícios de que, naquele lugar, pode existir um rio.
Essa necessidade de reeducação do olhar é relativamente recente. A partir de 1930, com a intensificação da industrialização de São Paulo, os rios foram gradativamente cedendo lugar para as ruas e os automóveis. Como é proibido erguer um prédio em cima de um rio, para evitar a contaminação do lençol freático, a maioria fica sob o asfalto – é também por isso que existem tantos corredores de horizonte espalhados pela cidade. Luiz garante que nenhum paulistano mora a mais de 200 metros de um curso d’água.
Se tivesse poderes para fazer o que bem entendesse, Bueno optaria pelo que não lhe parece nenhum milagre. Exumaria 300 metros de um desses rios, limparia suas águas e construiria em suas margens uma área de lazer ou um pequeno parque. Ele acredita que o prazer será tanto que os paulistanos desejarão estender a experiência a outras paragens. E exigirão que, para encontrar os rios de São Paulo, baste olhar para baixo.