Se o padre Feijó fosse candidato a presidente
Muitos dos problemas pelos quais passa o Brasil atual encontram reflexões originais no romance de José Carlos Gentili intitulado "Lagoa dos Cavalos"
Deonísio da Silva
O céu e o inferno dos políticos às vezes são vizinhos. O corpo do Padre Feijó está na cripta da Catedral da Sé, em São Paulo. Sua alma não se sabe. Restos mortais de outros políticos estão espalhados por catedrais e igrejas do Brasil inteiro, mas de suas almas também não sabemos.
O problema maior entretanto não é saber estes quesitos, mas desconhecer o passado de muitos deles, que traria luzes indispensáveis ao que foram, são ou serão. Certamente os leitores notam que também os mortos não são sempre os mesmos, de que são exemplos o próprio padre Feijó, senador, ministro da Justiça e regente do Império, levado à prisão um ano antes de morrer, e Joaquim José da Silva Xavier, o Tiradentes, condenado e enforcado por alta traição e depois transformado em mártir e herói nacional. Se com os mortos dá-se isso, imagine com os vivos, que vivem a retificar suas biografias, mesmo depois de fixadas em livros precoces.
Por isso, é importante reconhecer o valor da prosa de ficção de cunho histórico, operada em ambiente mais livre. O leitor leu poucas páginas de Lagoa dos Cavalos, romance do gaúcho José Carlos Gentili, membro brasileiro da Academia das Ciências de Lisboa, e já sabe que o menino, nascido no primeiro capítulo e batizado no segundo, é filho de padre.
Criado e educado por mulheres amancebadas com padres, ele será padre também. Estamos falando do padre Diogo Antônio Feijó, pai de muitos filhos ilegítimos, personagem solar desta narrativa vertiginosa e cativante da conturbada história do Brasil. Nossas praças e livros estão povoados de bustos e de estátuas dele e de outros vultos brasileiros, de biografia igualmente desconhecida dos alunos e dos frequentadores ou passantes que circulam no espaço urbano.
Um dos principais méritos deste romance histórico lançado em 2012 é contar o caso como o caso ainda não foi contado, servindo-se o autor para fazer isso de uma operação que tem elevado os padrões do romance brasileiro ao abrir vertentes narrativas soterradas por séculos com o fim de render à hipocrisia os esperados tributos.
Em nome desta e de outras falsidades ou dissimulações, às vezes agressivas, mente-se já na pia batismal, quando o celebrante declara que o menino é filho de pais incógnitos, entretanto presentes ao acontecimento inaugural de sua vida católica. Desde há algumas décadas está comprovado que o padre Diogo Antônio Feijó é filho ilegítimo do cônego Manuel da Cruz Lima, de Curitiba, ou do padre Félix Antônio Feijó.
Gentili adota a segunda hipótese e indica, baseado em documento histório que ninguém põe em dúvida, que sua mãe não é a viúva Maria Gertrudes de Camargo e, sim, a irmã dela, Maria Joaquina Soares de Camargo. O arranjo para o batismo tinha sido feito pelo padre Fernando Lopes de Camargo, irmão delas.
A existência do menino foi explicada à vigilante comunidade paulista com a categoria “filho enjeitado”, expressão de largo uso no Brasil antigo e que resultou em móvel que ainda hoje pode ser visto nos museus: a roda dos enjeitados ou roda dos expostos. O dispositivo de madeira, instalado à entrada de igrejas e conventos, tinha o fim de impedir abortos e infanticídios, pois, dado o rigor das e leis e dos costumes, os frutos de relações fora do casamento eram mortos no ventre das mães ou simplesmente jogados, mortos ou ainda vivos, aos porcos e aos cães. Com a roda dos expostos ou dos enjeitados, a Igreja providenciava o acolhimentos destas crianças e muitas delas tornaram-se vultos referenciais na história do Brasil, ainda que nem todos admitam este tipo de passado.
Ao abordar o tema de modo a que a personagem solar do romance seja esta importante figura política que é o padre Diogo Antônio Feijó, o escritor redime o tema num viés de todo original.
Inserida como outro pilar da narrativa está a maçonaria, apesar das duas excomunhões que a instituição recebera no século em que Feijó nasceu: a do Papa Clemente XII, editada em 1728, e do Papa Bento XIV, em 1751.
Práticas excomungadas ou proibidas não têm no Brasil o mesmo significado que porventura tenham tido em outras plagas. Diálogos do romance ilustram à farta as aplicações diferenciadas das leis, civis ou ecleasiásticas, de que é exemplo este trecho: “Outro padre maçom, Frei Joaquim do Amor Divino Rabelo Caneca, religioso como nós, Diogo”, diz um padre ao colega, “que era um dos líderes da Confederação do Equador, como chamam, também foi fuzilado, deixando suas filhas desoladas, Carlota, Joaninha e Aninha”.
Diversos panos de fundo do romance ilustram o passado colonial brasileiro onde germinaram pela primeira vez os temas e problemas de que se ocupa Lagoa dos Cavalos. Uma luz tênue deixa entretanto ilumina este contexto: o celibato, a maçonaria e os filhos enjeitados, conquanto assuntos relevantes, não davam tanta preocupação à sociedade quanto uma triste lembrança:
“Esvaziavam-se os cárceres de Portugal, e a Terra de Pindorama recebia o que havia de pior. Dom João III mandou lavrar um alvará especial concitando os criminosos a viverem no Brasil, tido como terra de couto e homizio, desde que os agraciados presidiários não tivessem sido condenados por heresia, sodomia, traição e moeda falsa”.
Muitos dos problemas pelos quais passa o Brasil atual encontram reflexões originais neste romance de José Carlos Gentili. E o autor as faz conciliando profundidade na abordagem e estilo simples e claro. É um dos livros que se deve ler para conhecer o Brasil. Afinal, esta não foi a primeira vez que a literatura brasileira revelou um segmento surpreendente da história clandestina de nosso País.
*Deonísio da Silva
Diretor do Instituto da Palavra & Professor
Titular Visitante da Universidade Estácio de Sá
https://portal.estacio.br/instituto-da-palavra