Recall, o terceiro turno do DEM
A maneira de fazer as reformas necessárias é pôr os ladrões na cadeia e deixar os honestos votarem pelo País
José Nêumanne (publicado no Blog do Nêumanne)
O Partido da Frente Liberal (PFL) nunca foi um campeão de votos, mas sempre manteve prestígio e força no poder republicano, conquistado nas urnas por pareceiros. O grupo teve relevância nos bastidores dos palácios quando o regime militar ruiu sobre os próprios pés de barro, egresso da periferia do poder anterior, durante cujo período teve o chefão mineiro Aureliano Chaves ocupado a Vice-Presidência da República, cargo na prática honorífico, na última gestão fardada, a do general João Figueiredo. Com 18 minutos de tempo de horário “gratuito” em rádio e televisão por dia, o segundo mais longo, obteve 600.838 votos, ou seja 0,88% dos votos válidos, ficando em nono lugar na eleição presidencial de 1989. Trata-se de um vexame para quem tinha sido governador nomeado de Minas Gerais de 1975 a 1978. E perdeu até no município onde nasceu, Três Pontas.
Mesmo tendo ocupado a Presidência por longos períodos por causa das cirurgias cardiovasculares a que se submeteu o chefe do governo nos EUA, o mineiro perdeu o lugar de destaque na legenda para o baiano Antônio Carlos Magalhães, o ACM, Toninho Malvadeza para adversários ou Toninho Ternura para aliados, na transição para o governo civil eleito pelo colégio eleitoral. O chefão da Bahia ganhou projeção nacional ao divulgar uma nota duríssima em resposta ao discurso do então ministro da Aeronáutica, brigadeiro Délio Jardim de Matos, na inauguração do Aeroporto 2 de Julho (hoje com o nome do filho dele, Luiz Eduardo Magalhães), em Salvador, em 4 de setembro de 1984, data de seu aniversário. Antes, quando ainda governador da Bahia, havia participado da reunião do conselho da Sudene que sagrara Tancredo Neves, do PMDB (hoje MDB), então governador de Minas, como oponente de Paulo Maluf, indicado pelo PDS, que derrotara o pretendente de Figueiredo, Mário Andreazza, na convenção do partido governista.
O pernambucano Marco Antônio de Oliveira Maciel, outro cacique do mesmo partido, entrou para a História da República como o vice ideal de qualquer presidente. Ao contrário da tradição dos antecessores no cargo, que se tornaram pedras no sapato dos presidentes, desde o marechal Floriano Peixoto, que derrubou o primeiro presidente e colega de armas, Deodoro da Fonseca, até Itamar Franco, que ocupou o lugar do cabeça da chapa Fernando Collor de Mello depois do impeachment. Afinal, ele nunca tirou a paz de Fernando Henrique Cardoso, do PSDB, mantendo-se sossegado no Palácio do Jaburu até o tucano passar a faixa a Luiz Inácio Lula da Silva, do PT, em 1.º de janeiro de 2003.
Desde sua criação, que tornou possível a eleição indireta de Tancredo Neves, o PFL teve atuação eleitoral muito apagada. Tanto é que se viu obrigado a mudar a denominação para Democratas (DEM), partido de sigla tão pouco inspirada como a anterior e de baixo apelo popular similar. Sua insignificância é retratada pelo cargo ocupado pelo dono atual, que o recebeu de herança familiar: ACM Neto, prefeito de Salvador. A decadência do clã e da sigla pode ser denotada por uma circunstância: o neto de Antônio Carlos, muito popular na capital, preferiu ficar na cadeira a sair para disputar o legado do avô com o novo capitão-mandatário da Bahia de Todos os Santos, o petroleiro e sindicalista carioca Jaques Wagner, que se deu ao luxo de se reeleger senador e manter no palácio de governo seu compincha petista Rui Costa.
No entanto, graças à atuação do correligionário gaúcho Onyx Lorenzoni, bolsonarista de primeira hora e escolhido para ocupar a chefia da Casa Civil do presidente eleito em outubro de 2018, Jair Bolsonaro, o DEM acaba de atingir os píncaros da República e sonha agora alçar voos mais ambiciosos. O Estadão de domingo deu conta de que o presidente do Senado, Davi Alcolumbre, do DEM do Amapá (assim como Romero Jucá manda no MDB de Roraima), quer convocar, por emenda à Constituição, do alto do melhor lugar da Mesa da Câmara Alta, um recall para avaliar o pulso do presidente da República com o estetoscópio do povo.
O recall (em tradução literal, segunda chamada) é mais conhecido em seu uso comercial. É usado para substituição de peças defeituosas em lançamentos de automóveis ou outros produtos comerciais com defeito. O sistema é usado com eficácia em democracias com voto distrital, como na maior de todas, a americana. No Brasil não chega propriamente a ser original. José Bonifácio de Andrada e Silva, o Patriarca da Independência, quando era vice-presidente da Província de São Paulo, em 1822, influenciou, segundo a Wikipedia, a promulgação do decreto de 16 de fevereiro de 1822 que criou o Conselho dos Procuradores-Gerais das Províncias do Brasil, estabelecendo “a possibilidade de destituição dos eleitos, por iniciativa dos eleitores, caso não cumprissem suas obrigações; embora sua curta duração, esse mecanismo de 1822 foi a primeira forma de intervenção direta do eleitor na representação política de que se tem notícia. Era um misto dos conceitos traçados pelo mandato imperativo com os do recall, que viria a ser instalado nos Estados Unidos“. Na verdade, sê-lo-ia apenas em alguns municípios no Estado da Califórnia. De acordo com a mesma fonte, em 1889, com a proclamação da República, repetiram-se tentativas de incluir a fórmula em Constituintes estaduais, caso das do Rio Grande do Sul, Santa Catarina, Goiás e São Paulo. Pelo Projeto de Emenda à Constituição n.º 76/2005, o então senador Eduardo Suplicy tentou instituir essa forma de encurtamento de mandatos. Mas, de acordo com especialistas, não se tratava propriamente de recall, e sim de uma Abberufungsrecht, isto é, da possibilidade de revogação coletiva, e não só individual, de mandatos políticos tanto no Legislativo quanto no Executivo.
O projeto que o Centrão pretende aprovar para domesticar o ímpeto punitivo do presidente da República é apenas um pretexto para chegar ao poder sem voto, dada a dificuldade histórica do PFL/DEM de vencer disputas majoritárias desde seu surgimento. A essa fome ancestral do DEM de exercer o mando político sem vencer eleições juntou-se agora a vontade de comer que o Centrão, ao qual o partido de ACM Neto se uniu para integrar o latifúndio de tempo em TV e rádio do ex-governador de São Paulo Geraldo Alckmin, na campanha presidencial do ano passado. Alckmin teve 44,4% do horário disponível aos 14 candidatos, tendo sido exposto 39 vezes mais do que Jair Bolsonaro, com 8 segundos e meio. Como já faz parte da História, o tucano obteve 5 milhões 96 mil e 349 sufrágios (4,7% dos votos válidos) no primeiro turno e o candidato do PSL, 49 milhões 276 mil e 990 (46,03%), dez vezes mais.
Atualmente, o partido de ACM Neto só tem força para ocupar, como ocupa, os cargos mais altos do Legislativo porque está associado ao chamado Centrão, espécie de polo de união da fisiologia, que governou na meia gestão do emedebista Michel Temer, primeiro sob a égide de Eduardo Cunha, que o comandou até ser preso pela Operação Lava Jato. Hoje ele é substituído pela troica Rodrigo Maia, Paulinho da Força (SD-SP) e Valdemar Costa Neto, sem mandato, mas com muita influência enquanto, beneficiado por indulto, está dispensado de cumprir sete anos e meio de pena sob acusação de ter recebido propina quando exercia a propriedade do PL, que, a exemplo dos outros sócios do empreendimento partidário, mudou a sigla para PR.
Convém anotar, por questão de justiça, que esse poder do Centrão, que as multidões bolsonaristas execraram nas ruas, tem a poderosa contribuição da caneta Bic de Bolsonaro. Afinal, este nomeou um expoente do DEM, o veterinário gaúcho Onyx Lorenzoni, que deixou Rodrigo Maia vencer a reeleição na Câmara, embora espalhem à boca pequena que são inimigos. E também inspirou e articulou a vitória do amapaense Davi Alcolumbre à presidência do Senado. Entre todos eles há o ponto comum da suspeição de terem cometido ilícitos. Lorenzoni, de caixa 2, que seu colega de Ministério Sergio Moro tenta criminalizar; Alcolumbre, de malversação de verbas eleitorais em dois processos que, perdoados em seu Estado, estão sob julgamento no Supremo Tribunal Federal (STF); e Rodrigo Maia, citado como Botafogo nas delações premiadas da Odebrecht.
Alcolumbre venceu Renan Calheiros numa eleição fraudada, que, como presidente da Mesa, ele deixou de investigar com a cumplicidade do relator, Roberto Rocha (PSDB-MA). O chefe do Executivo terá de conviver com ele e Maia por pelo menos mais uns dois anos, pois essa é a duração de seus mandatos. E apesar de todas as evidências de traição acima citadas, Lorenzoni não parece ameaçado de perder o endereço VIP de seu gabinete, ao lado do presidencial, no Palácio do Planalto.
Do trio, Maia é o mais ameaçado de um futuro inglório. Toda a Câmara tem mandato novo, mas não estendido. Assim sendo, não tem foro (privilegiado?) sobre crimes cometidos em outros mandados. É necessário parar de chamar roubalheira de velha política. A roubalheira nem é nova nem velha. É roubalheira, e se o passado não for punido, continuará no futuro. A maneira de fazer as reformas necessárias é pôr os ladrões na cadeia e deixar os honestos votarem pelo País. O melhor jeito de resolver os obstáculos liderados por Rodrigo Maia é deixá-lo a cargo do juiz Marcelo Bretas no que tange às denúncias a que já responde na Operação Lava Jato do Rio.