Portas cerradas
Diante da placa de folha de flandres sobre a armação de madeira me dei conta do fim. Estavam mortas as possibilidades de reabrir lembranças deliciosas
Heraldo Palmeira
A placa com “Aluga-se” em letras garrafais encerrava uma história. O trânsito lento e o sinal fechado mais adiante facilitavam a leitura daquele anúncio incômodo dependurado no umbral. A papelaria de tantos anos fechara finalmente suas portas, depois de uma lenta agonia.
Não sobrara alternativa de mudança para um novo endereço. Os donos, um casal avançado na idade, estavam cansados e se diziam incapazes de enfrentar as modernizações exigidas pela competição do mercado. Aprenderam a jurar que agora preferiam destinar tempo integral aos filhos e netos, mas estava claro que os dois não sabiam o que fazer com aquela tristeza comovente instalada nos olhos. Pareciam atarantados na soleira do desconhecido imposto ou escolhido — tinha cá minhas dúvidas —, prestes a se iniciar.
Eu fora avisado algumas semanas antes, mas sempre via o ritual do desmonte andando a passos tão lentos que até consegui enxergar notas de esperança. Agora, estava claro que tudo não passou da tal “melhora da morte”, quando o doente parece haver recuperado milagrosamente suas forças, mas sai da vida em seguida.
Diante daquela placa de folha de flandres sobre a armação de madeira me dei conta do fim. Estavam mortas as possibilidades de novas conversas, de reabrir lembranças deliciosas, do cafezinho fumegante em determinado momento da tarde — segredo restrito a meia dúzia —, que poderia vir acompanhado ora de biscoitos, ora de bolinhos, ora de bolachas, ora de tapiocas, ora de quase todos. Tudo agora ficaria finito numa espécie de arquivo morto da minha memória.
Retirou-se de cena o enorme balcão onde falávamos animados de grampeadores Carbex, inigualáveis em robustez e precisão nos tempos áureos, e daquele outro, enorme, batizado de Ricardão por analogias a poderio, eficiência e sexo. Das almofadas para carimbos, dos tinteiros e suas tintas perfilados ao lado de mata-borrões. Das esponjas embebidas em glicerina ou água, para umedecer dedos prestes a manusear páginas ou cédulas. Dos belíssimos frascos de vidro para armazenar cola, cujas tampinhas ofereciam o pincel providencial para espalhar seu conteúdo sem lambuzar tudo ao redor.
Dos pesos de vidro, transparentes ou cheios de adereços internos — onde se podia mandar aplicar nomes e mensagens —, que serviam para domar o espírito brincalhão do vento sobre os papéis. Dos mais diversos modelos de cadernetas. Dos lápis Hidrocor, grande novidade na época do lançamento. Das borrachas Mercur de duas cores, para apagar tinta (metade azul) e grafite (metade vermelha), cuja eficiência podia até arrancar literalmente os erros do papel e deixar buracos no lugar.
Dos suportes de baquelita para rolos de fita Durex, produto que ficou tão conhecido que a marca virou substantivo de fita adesiva no dicionário — eu nunca consegui entender o mistério que mantinha a cola eficiente naquele pedaço que ficava esticado entre o rolo e a serra de metal para corte. Dos apontadores de lápis presos às mesas, cujo movimento da manivela criava cones perfeitos.
Dos rotuladores Dymo, Sylvapen, Rotex, Motex, Astro para imprimir fitas de vinil autoadesivas, coloridas, suprassumo do capricho em qualquer uso, de trabalhos escolares a arquivos das empresas — depois foram lançadas algumas eletrônicas, com teclado para digitação. Para minha surpresa, ainda existem no mercado alguns bem caros, embora a Dymo mantenha modelos mais em conta.
Na velha papelaria também ríamos da quase inutilidade atual do papel-carbono, que atingiu reluzente preço de relíquia para os insistentes usuários. Nos tempos de sucesso chegou ao ponto de neologismo para denominar cópia de qualquer coisa, até de um cantor que imitasse outro. Batizou, por isso mesmo, atração musical de programa de televisão. Papel-carbono que morreria de rir da ineficiência dos modernos papéis carbonados, capazes de reproduzir, apenas de forma anêmica, o que se escreve na página de cima.
Durante o período de agonia do lugar, me enchi de covardia e quase driblei a vontade de ir dar um abraço de despedida nos meus amigos de confraria, como se não falar a respeito evitasse o pior. Cabisbaixo de coragem, entrei na loja para meu último café. Veio regiamente acompanhado com bolo de laranja, tapioca e queijo, como se não houvesse amanhã.
O sinal de luz impaciente no retrovisor me resgatou da contemplação do fim, me fez ajudar a mover novamente o cortejo estressante do trânsito. Ficou para trás a placa agressiva, retirada poucos dias depois.
Apesar das obras de reforma anunciarem que há novo inquilino, não tive interesse em descobrir o que virá depois da poeira dos operários. Vai que nasce um vínculo que faz sofrer depois…