Passados quase dois meses, a pergunta é outra: onde está o corpo de Amarildo?
PUBLICADO EM 9 DE SETEMBRO JÚLIA RODRIGUES Desde 14 de julho, uma pergunta à caça de respostas é repetida pela voz da multidão ou por faixas exibidas em manifestações de protesto: onde está Amarildo? Passados dois meses do sumiço do ajudante de pedreiro conhecido pelo apelido de “Boi”, a pergunta mudou: onde está o corpo […]

PUBLICADO EM 9 DE SETEMBRO
JÚLIA RODRIGUES
Desde 14 de julho, uma pergunta à caça de respostas é repetida pela voz da multidão ou por faixas exibidas em manifestações de protesto: onde está Amarildo? Passados dois meses do sumiço do ajudante de pedreiro conhecido pelo apelido de “Boi”, a pergunta mudou: onde está o corpo desse brasileiro que sobrevivia na Rocinha? A interrogação conduz a outra indagação: quem matou Amarildo de Souza? Ele tinha 43 anos na noite daquele domingo em que acompanhou numa birosca, pela TV, o jogo entre Vasco e Flamengo.
Já estava de saída para casa, onde partilharia com a família o peixe que fisgara na véspera, quando foi abordado por tripulantes de uma viatura da Unidade de Polícia Pacificadora. Um dos PMs, cujo apelido é “Cara de Macaco”, resolveu confiscar-lhe os documentos e levá-lo “para averiguações”. O policial está longe de ser um campeão de popularidade entre a gente do lugar. “Ele vivia implicando com o Boi e seus parentes”, contou ao Globo um dos moradores da Rocinha. “É um homem ruim, gosta de humilhar os pobres daqui”.
Engajado na operação Paz Armada, concebida para localizar e prender suspeitos de envolvimento com o tráfico de drogas sem passagens pela polícia, só “Cara de Macaco” (que ainda não teve o nome e o sobrenome revelados) pode dizer por que resolveu incluir Amarildo no grupo de 30 capturados entre 13 e 14 de julho. Todos permanecem detidos ou voltaram para casa. Só Amarildo sumiu.
Ele dividia com a mulher, Elizabete Gomes da Silva, e os seis filhos um barraco de tijolo de um único cômodo, sem banheiro, localizado numa rua onde o esgoto corre a céu aberto e a tuberculose é doença recorrente. Segundo o delegado Ruchester Marreiros, Amarildo tinha ligações com traficantes de drogas. Embora a família e os amigos o qualifiquem de “honesto e trabalhador”, Boi registra na biografia duas detenções. Em 1989, aos 18 anos, foi acusado de furto. Em 2005, quando ganhava dinheiro como “flanelinha”, foi autuado em flagrante por exercer um ofício considerado ilegal.
Depois de embarcar na viatura, Amarildo foi levado ao posto da UPP situado na parte baixa da Rocinha. Lá, trocou as últimas palavras com a mulher. “Ele me olhou e disse que estavam com os documentos dele”, disse Elizabete ao Globo. Os policiais ordenaram que esperasse pelo marido em casa. Continua esperando.
De acordo com o major Edson Santos, afastado do comando da UPP depois do sumiço de Amarildo, o ajudante de pedreiro foi liberado minutos depois de chegar à sede da UPP, na parte alta do morro. Não há registros da passagem de Amarildo por ali. Duas das 84 câmeras de segurança instaladas na Rocinha, justamente as que monitoram a fachada da sede da UPP, não estavam funcionando naquele 14 de julho. Os investigadores do caso não descartam a hipótese da execução por PMs, mas examinam com mais ênfase a tese que atribui o assassinato a traficantes.
A Polícia Civil gastou 16 horas na reconstituição dos últimos passos do ajudante de pedreiro. Baseada em depoimentos colhidos durante as apurações, a encenação contou com cerca de cem policiais civis, mas ainda não produziu resultados relevantes. As conclusões devem ser reveladas até o fim deste mês. Até agora, não foram identificados com precisão possíveis suspeitos.
Em 14 de agosto, a versão oficial foi abalada pela reportagem veiculada no Jornal Nacional com base em dados do GPS da viatura usada pelos policiais. Do posto em que conversou com a mulher, Amarildo foi levado às 19h22 para a sede da UPP, na parte alta do morro. O veículo permaneceu no local por cinco minutos. Às 19h30, retornou ao posto. Um minuto mais tarde, seguiu de novo morro acima. Às 19h37, desceu a Rocinha e rumou para a zona portuária do Rio. Câmeras de segurança instaladas nas proximidades da UPP registraram que um veículo cinza seguiu a viatura até a saída da Rocinha.
Os policiais circularam por 47 minutos, passaram pela Lagoa Rodrigo de Freitas, seguiram para o centro e ficaram estacionados por sete minutos no Batalhão de Choque da PM. Às 21h09, partiram em direção à zona norte. Às 21h37, chegaram ao Hospital Central da PM, no morro de São Carlos. Mais dois minutos e a viatura regressou à zona sul, parou por seis minutos no batalhão da PM no Leblon e enfim voltou para a Rocinha, às 22h17.
Em 15 de agosto, o comandante das UPPs, coronel Frederico Caldas, confirmou que fora esse o trajeto da viatura dirigida pelo soldado Felix Cuba, que tinha a companhia da PM identificada como “soldado Monteiro”. Segundo o coronel, os dois subordinados deixaram Amarildo na sede da UPP e pretendiam abastecer o veículo no Batalhão de Choque quando se perderam no caminho. “O normal seria que eles abastecessem no 23° Batalhão, no Leblon, mas não havia combustível disponível lá”, reconheceu. “Então eles receberam a ordem para se dirigirem até o Batalhão de Choque, mas erraram uma entrada, na saída no túnel Rebouças”. A parada no Hospital Central da PM foi atribuída a uma ordem, transmitida por telefone, para que Félix e Monteiro buscassem um colega que necessitara de atendimento médico. “Assim como todo mundo, a Polícia Militar quer também saber onde está o Amarildo”, enfatizou o coronel na entrevista ao Jornal Nacional.
O advogado da família, João Tancredo, informou ao Globo que os parentes estão convencidos de que Amarildo foi torturado e morto por policiais da UPP. “É muito estranho o carro voltar para o Batalhão do Leblon”, disse o advogado. “Por que eles voltaram, se já haviam abastecido no Batalhão de Choque?” Maria Eunice Dias Lacerda, irmã de Amarildo, concorda: “É duro dizer, mas eu acho que meu irmão está morto. Ele sempre dizia que revidaria se fosse agredido por um policial. Dizia que trabalhador não pode levar tapa na cara e ficar quieto”.
Por falta do atestado de óbito, nem Elizabete é viúva nem os filhos são órfãos. Mas vivem como se fossem. A ausência do chefe sujeitou a família a uma situação financeira ainda mais penosa que a anterior. Até o dia do desaparecimento, os R$ 300 do salário de Amarildo e os ganhos dos três filhos mais velhos, que perderam o emprego, garantiam a sobrevivência do grupo. Hoje a refeição do dia frequentemente se limita a banana e farinha. Não há dinheiro para comprar comida.
O caso ganhou notoriedade em todos os cantos do país por ter entrado na pauta das manifestações de protesto contra Sérgio Cabral, mas o ajudante de pedreiro tornou-se muito mais que um símbolo da ineficiência do governo fluminense e da violência policial. Ele hoje representa os 35 mil desaparecidos nos últimos seis anos no estado do Rio de Janeiro. São todos Amarildos.