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Augusto Nunes

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O doutor Ulysses, o chapéu de palha e a mulher do político

Nada a ver com essa cara de faraó, pensei enquanto olhava de soslaio o chapéu de palha que Ulysses Guimarães, agora ressonando à minha esquerda no banco traseiro do Opala, usava desde o fim da tarde daquele sábado de setembro. Ganhara o chapéu em Itaquaquecetuba, procissão de vogais e consoantes fincada na Grande São Paulo […]

Por Augusto Nunes Atualizado em 31 jul 2020, 17h17 - Publicado em 12 jul 2009, 16h03

Nada a ver com essa cara de faraó, pensei enquanto olhava de soslaio o chapéu de palha que Ulysses Guimarães, agora ressonando à minha esquerda no banco traseiro do Opala, usava desde o fim da tarde daquele sábado de setembro. Ganhara o chapéu em Itaquaquecetuba, procissão de vogais e consoantes fincada na Grande São Paulo que hospedara o quinto comício do dia. Cinco horas e dois palanques depois, o presente do eleitor anônimo continuava na cabeça do deputado que comandava o PMDB em mais uma campanha eleitoral. Achei que esquecera o chapéu.

– Presente de eleitor é coisa séria – disse Ulysses sem abrir os olhos.

Espantou-me o aparte mediúnico. Como é que ele descobrira o que eu estava pensando?, estranhei ao ouvir a voz grave e rouca. Aos 60 anos, cumpria o 7º mandato na Câmara dos Deputados (e seria reeleito outras quatro vezes). Fazia coisas de que até Deus duvida. Mas adivinhar pensamentos, ainda não. Pelo menos até onde eu sabia.

– O problema do político é a mulher do político – continuou a intrigar-me o timbre de cantor de cabaré, enquanto Ulysses descerrava os olhos profundamente azuis e acomodava no banco o corpo longilíneo. – O sujeito entra em casa no escuro, tira o sapato para não fazer barulho mas não adianta: acaba ouvindo uma mulher sonolenta querendo saber como foi o dia. O sujeito conta que almoçou com fulano ou encontrou beltrano e lá vem algum comentário do tipo “sei, aquele que você disse que é cafajeste”, “sim, esse que vive dizendo que você não presta”. Elas têm uma memória tremenda. Ninguém escapa, do vereador de distrito ao presidente da República.

Era difícil imaginar Mora Guimarães, muito risonha e pouco falante, protagonizando cobranças noturnas. Embora assumidamente apaixonado pelo poder (“Não existe nada mais afrodisíaco”), Ulysses jamais vendera a alma para consegui-lo. Fora sempre um homem honrado. E continuaria a sê-lo até 12 de outubro de 1992, quando desapareceu no mar depois da queda do helicóptero em que viajava com Mora e os amigos Severo e Henriqueta Gomes.

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Como os políticos da linhagem a que Ulysses pertenceu, são coisa do século passado mulheres preocupadas com valores éticos ou morais. No Brasil do século 21, quem se casa com um pai da pátria descobre no altar que só é pecado perder a eleição e o poder. O resto pode, até vender a mãe a preço de custo. Vira cúmplice do marido, e cúmplices não fazem perguntas constrangedoras.

A mulher do deputado João Paulo Cunha, por exemplo, pergunta se já chegou o dia de buscar mais cinquenta mil para pagar a conta da TV a cabo. A mulher do governador Cid Gomes pergunta se pode embarcar a mãe no jatinho. E a Primeira Passageira pergunta pela próxima viagem. Não para a África, que de pobre basta o Brasil. Para a Europa é bem melhor. Paris, de preferência. Se o marido estiver bem disposto, pergunta também se vão bem os negócios do primogênito, ou se o amigo José Sarney está animado.

E todas dormem o sono dos sem-culpa, porque o remorso e a vergonha foram demitidos pela Era da Mediocridade.

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