José Nêumanne: Entregues às baratas
Ninguém cuida do que deveria cuidar e o povo brasileiro que se dane!
Publicado no Estadão
Este ano de desgraças de 2016 do B começou com a notícia da carnificina no Complexo Penitenciário Anísio Jobim (Compaj), em Manaus (AM), que resultou em 56 mortes. Vídeos com cabeças decepadas e membros separados dos troncos das vítimas correram o mundo. O presidente Michel Temer ficou quatro dias absolutamente calado. Quando se dignou falar, chamou-a de “acidente pavoroso”. E, quando a patota inquieta das intrépidas redes sociais cobrou o uso impróprio do substantivo, recorreu à prática pouco recomendável de embromar a plateia, citando um verbete de dicionário como justificativa pelo eufemismo.
O próprio Temer, depois, tomou juízo e subiu o tom ao definir, de forma mais exata, a dita carnificina de “matança pavorosa” – o substantivo correto à frente e o adjetivo o reforçando depois. Não há, contudo, palavras capazes de definir ou ocultar a vergonha que nos oprime diante da descoberta da inércia ou da adoção da velha prática deste país de órfãos, cujos pais ocultos não estão nem aí pro velho “toma que o filho é teu”. Depois do escorregão presidencial, vieram mais dois massacres que eram anunciados há tempos: o do Penitenciária Agrícola de Monte Cristo, na zona rural de Boa Vista (RR), e o da Penitenciária Estadual de Alcaçuz, à beira das praias paradisíacas de Nísia Floresta, na Grande Natal (RN).
Entre um e outro, o chefe do governo federal, sempre advertindo que segurança pública é assunto definido como estadual pela Constituição, foi aceitando a chantagem dos governadores malandrões dos Estados com presídios conflagrados. Prometeu dinheiro para construir mais penitenciárias, ofereceu a Força Nacional para ajudar a Polícia Militar de cada um na patrulha e, por fim, forçou as Forças Armadas a repetirem o erro do combate corpo a corpo contra o crime nas favelas do Rio no Mundial da Fifa em 2014 e na Olimpíada de 2016. Um erro atrás do outro, mas sempre sob o beneplácito geral de que alguma coisa estava sendo ou para ser feita.
Em plena conflagração generalizada, ele tentou reunir os 27 governadores. Os que foram a Brasília estenderam um prato fundo pedindo a esmola calhorda e oportunista de vincular despesas deles com segurança ao Orçamento da União, seguindo a trilha usada com educação e saúde. Temer parecia disposto a ceder a tudo, mas a essa não tinha como: não há Orçamento que resista a tanta benemerência neste ano de baixa arrecadação, provocada pelo desemprego sem perspectivas de melhora.
A tragédia começou sob o protagonismo de José Melo, uma figura caricata de governador de um Estado conflagrado por causa da guerra pelo controle das drogas depois da retirada do campo de batalha das “Forças Armadas Revolucionárias” da vizinha Colômbia. Isso ocorre em plena troca de sua guarda para as facções Primeiro Comando da Capital (PCC), paulista, e Comando Vermelho (CVV), carioca, e as subsidiárias Família do Norte (FDN), na Amazônia, e Sindicato do Crime RN, no Nordeste. O então diretor do Compaj foi afastado sob suspeitas, reforçadas por denúncia escrita de um detento morto e decapitado. E as evidências de controle das prisões por seus moradores foram exibidas de forma ainda evidente e aterradora.
O Brasil inteiro ficou, então, ciente de que em 2015 houve uma rebelião em Alcaçuz e nela o presídio inteiro foi destruído pelos rebelados. As celas tornaram-se inabitáveis e suas grades foram desmontadas e transformadas em lanças. Desde então, os condenados que ali cumprem pena passaram a controlar o recebimento e a distribuição de sua comida, dispondo para isso inclusive das chaves dos refeitórios. Após a revelação da chacina dos soldados do PCC pelas hordas do Sindicato RN, assumiu o discurso oficial o secretário da Justiça e Cidadania (!!!), Walber Virgolino da Silva Ferreira, assim mesmo, com prenome e sobrenomes trocados de Virgolino Ferreira da Silva, o rei do Cangaço.
Enquanto isso, o chefe dele, Robinson Farias, se fazia de inocente. Quando foi a Brasília tentar chantagear o presidente da República e seu atarantado ministro da Justiça, Alexandre de Moraes, subitamente fantasiado de candidato a substituir Teori Zavascki – morto na queda de um avião em Paraty –no Supremo Tribunal Federal (STF), teve o desplante de afirmar que não sabia de nada do que ocorria no interior do presídio. O cinismo era tal que houve quem fingisse não tê-lo ouvido.
Só que o chefe do governo federal não aceitou a condição da vinculação de verbas estaduais de segurança ao Orçamento. Mas cedeu prontamente aos pedidos de reforço de PMs de outros Estados, sob a enganosa denominação de Força Nacional, e tropas fardadas e armadas para patrulhar as ruas da capital. O factótum de Temer na Justiça não foi capaz de lhe dar um argumento fatal às pretensões do farsante potiguar. A PM do seu Estado tem hoje 8.300 homens. Se uma tropa dessas é incapaz de controlar uma penitenciária com 1.200 presos (sete vezes menos), este pode ser um recorde de incompetência digno de figurar no Guinness.
Neste fim de semana, a Força Nacional encontrou cabeças cortadas há dez dias e túneis escavados na areia da praia, ali onde outro energúmeno local resolveu erguer uma prisão dita de segurança máxima. As tropas do Exército que patrulham Natal, contudo, estão diante de um fato consumado: no quinto dia de sua atuação, os ônibus que teriam de levar os trabalhadores ao emprego ainda estavam estacionados nas garagens das viações para evitar serem incendiados e depredados pelos adversários de bermuda e camiseta dos cartéis do crime que comandam o novo cangaço no Rio Grande do Norte, Estado onde os cabras de Lampião nunca foram bem-sucedidos.
Só que os natalenses nada têm de que se arrepender por terem sufragado nas urnas um campeão mundial da ineficácia. Afinal, Robinson Farias derrotou na eleição de 2014 o figurão do PMDB de Temer, que mandou no governo Dilma, Henrique Eduardo Alves. Aliás, o Henriquinho foi presidente da Câmara dos Deputados e é eterno ex-ministro de qualquer coisa em qualquer gestão desta República sem moral. O ex-tudo em todos os ex-governos teve de deixar o Ministério do Turismo às pressas porque foi delatado como beneficiário do esquema de propinas da Petrobrás.
Ao comparar os acusados de corrupção na Lava Jato com os membros das facções que sequestraram a sociedade brasileira direto das celas e dos pátios (onde celas não há, caso de Alcaçuz), Carlos Ayres Britto, ex-presidente do STF no início do julgamento do mensalão, disse a Josias de Souza que “deletérios” são ambos. “Os assaltantes do erário são os meliantes mais prejudiciais à ideia de vida civilizada”, disse ainda. E completou: “O dinheiro que desce pelo ralo da corrupção – sistemicamente, enquadrilhadamente – é o que falta para o Estado desempenhar bem seu papel no plano da infraestrutura econômica, social, prestação de serviços públicos, educação de qualidade e saúde. O assaltante do erário, no fundo, é um genocida. É o bandido número um”. Seria, então, o caso de considerá-los membros de uma 28.ª facção?