J. R. Guzzo: Pernil pronto
A sociedade brasileira se esquece que muito mais eficaz do que criar leis seria aplicar as que existem
Países subdesenvolvidos, sobretudo em matéria de desenvolvimento mental, costumam ter em comum uma característica não muito lembrada: a espetacular quantidade de questões cretinas presentes nas discussões que fazem parte do seu dia a dia. O Brasil, que vive numa permanente competição mundial para ver quem fica com os piores lugares em praticamente todas as áreas da atividade humana, do tempo perdido pelo cidadão numa repartição pública à capacidade de lidar com a aritmética elementar, pode estar à beira do título de campeão neste quesito. Nada parece demonstrar tão bem nosso potencial de criar, engordar e consumir bobagens fora de série quanto essa história das “Dez Medidas” contra a corrupção, hoje debatida no mundo político, jurídico e vizinhanças com a intensidade das paixões mais tórridas. Ainda agora um ministro do Supremo Tribunal Federal, na situação de arruaça descontrolada que envolve atualmente o ato de fazer leis neste país, acendeu mais um holofote de escuridão em torno das tais medidas; mandou o Senado Federal devolver à Câmara dos Deputados o projeto que recebera dela, já aprovado, para novas discussões. Mais gritaria. Mais bate-boca. Mais desordem. Menos, e cada vez menos, algum sinal de vida inteligente nesta baderna política e legal.
O STF pode fazer isso? Não pode? A Câmara tem o direito de fazer emendas num projeto de lei? Quais? O que está certo? O que está errado? O público está recebendo neste preciso momento uma cordilheira completa de notícias, opiniões, análises e tudo mais sobre as aventuras e transmutações da “lei anticorrupção”; não há nenhuma necessidade, portanto, de castigar o coita do com mais prosa e verso sobre o assunto. Ele precisa menos ainda, Deus nos livre, de ser idiotizado com as hermenêuticas, e propedêuticas, e bobagêuticas que compõem a abordagem “jurídica” do tema. Este artigo apenas pede a devida “vênia” do leitor para registrar uma observação prática . O debate sobre as “Dez Medidas” já era incompreensível porque nunca fez sentido nenhum; agora fica garantido que continuará exatamente assim, mas com um carimbo do Supremo Tribunal Federal. Como pode fazer sentido um conjunto de providências contra a corrupção que não muda em nada, absolutamente nada, as condições que tornam a corrupção praticamente inevitável no Brasil? Seus defensores acham que a chave de tudo está em tornar mais pesadas as punições para quem rouba. Não percebem, apesar de todas as provas que recebem diariamente, que ninguém se assusta com as penas; a única coisa que realmente pode atrapalhar o ladrão é a redução das oportunidades de roubar. Nisso não se mexe uma palha. O erário público brasileiro continua sendo um imenso pernil, um dos maiores do mundo, pronto o tempo todo para ser fatiado; a situação, na verdade, só piora, pois quanto mais a autoridade pública se mete na vida do país, mais chances cria para corruptos e corruptores.
“Cadeia”, como se vê, não faz ninguém roubar menos. Nunca houve, em toda a história do Brasil, tanta gente investigada, processada, presa e condenada por corrupção como há no presente momento. Nunca se furtou tanto. Só nos últimos dias, a polícia prendeu professores por roubo de bolsas de estudos, no Rio Grande do Sul, fez um rapa na prefeitura de Itu, em São Paulo, por ladroagem no filão imobiliário, prendeu a prefeita e outros peixes gordos em Ribeirão Preto – em suma, é algo que simplesmente não para mais, saiu fora de qualquer controle e está contaminando um número cada vez maior de áreas. Hoje se vai em minutos do primeiríssimo escalão da República a tudo quanto é prefeitura de interior, da venda de alvarás ao roubo de bolsas de estudo – sim, mete-se a mão até nisso, bolsas de estudo. Enquanto as malas de dinheiro vivo voam de um canto para o outro, ferve o debate nacional, gravíssimo, sobre a criação de mais dez regras contra a roubalheira. O que se pode esperar de bom numa situação dessas? A sociedade brasileira continua enganando a si mesma com a ideia de que vai resolver problemas através da criação de novas leis – e se esquece que muito mais eficaz do que isso seria, modestamente, aplicar as leis que já existem. Que leis novas tiveram de ser criadas para permitir a atuação e o funcionamento da Operação Lava Jato? Nenhuma. O que houve aí foi unicamente vontade, coragem e competência para se aplicar as regras existentes. É, justamente, o que está faltando.