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Augusto Nunes

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Homenagem ao poeta Roberto Piva

Em homenagem a Roberto Piva, morto neste sábado, a seção publicará ao longo desta semana poemas do autor marginal entre os posts da Feira-Livre . Para abrir a série, um artigo de Jotabê Medeiros publicado no Estadão desta segunda-feira. O POETA QUE MAIS SABIA VIVER À MARGEM Jotabê Medeiros “E para que ser poeta em […]

Por Augusto Nunes Atualizado em 31 jul 2020, 14h53 - Publicado em 5 jul 2010, 22h04

Em homenagem a Roberto Piva, morto neste sábado, a seção publicará ao longo desta semana poemas do autor marginal entre os posts da Feira-Livre . Para abrir a série, um artigo de Jotabê Medeiros publicado no Estadão desta segunda-feira.

Piva 3

O POETA QUE MAIS SABIA VIVER À MARGEM

Jotabê Medeiros

“E para que ser poeta em tempos de penúria?”, perguntava Roberto Piva em um de seus mais recentes poemas. Mais do que seus contemporâneos, o poeta sabia o que era viver à margem: de opiniões firmes, visionário, feroz contra as unanimidades de laboratório, Piva também bradou orgulhosamente seu homossexualismo por becos e praças de São Paulo. Diagnosticado com o mal de Parkinson há cerca de uma década, viveu modestamente nos últimos anos, sendo evitado por quem o bajulava e pelos círculos literários bem postos do País.

Internado desde maio no Hospital das Clínicas, Piva morreu anteontem, aos 72 anos, em São Paulo, com falência múltipla dos órgãos decorrente de uma insuficiência renal. Ele chegara ao hospital com uma infecção na próstata, logo diagnosticada como um câncer – que posteriormente se espalhou pelos ossos, agravando seu estado. Não era a primeira internação neste ano. Em janeiro, havia sido hospitalizado com infecções urinária e cardíaca; dois meses depois, voltou ao hospital para uma cirurgia no coração. O corpo foi velado no sábado, no Cemitério do Araçá, e cremado na manhã de ontem na Vila Alpina.

Piva tornou-se fundamental para a poesia brasileira em 1963, quando, ainda garoto, lançou Paranoia, poemas-instântaneos da metrópole cinza, contraditória e brutal que se formava. O livro foi reeditado em novembro do ano passado pelo Instituto Moreira Salles (208 págs., R$ 60). O IMS chegou a anunciar um lançamento na Casa das Rosas, no dia 7 daquele mês, mas Piva já estava muito debilitado para participar da noite de autógrafos, que foi então cancelada.

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Paranoia tem um efeito meio alucinógeno, é um livro que inocula imagens na mente do leitor a todo instante. Nenhum verso é vulgar, nenhuma imagem é estranha – e, ainda assim, todas são surpreendentes, como “terraços ornados com samambaias e suicídios” e “as galerias do meu crânio não odeiam mais a batucada dos ossos”.

É um grande livro de poesia sobre uma complexa metrópole, um retrato de São Paulo como poucos ousaram fazer. Também é, simultaneamente, um desafio para que se dê à palavra um status de essencialidade e um poder de contágio: nenhum verso é vulgar, nenhuma imagem é estranha – e, ainda assim, todas são surpreendentes.

Surrealismo. Em vez dos mestres da poesia consequente, estrategista, escolástica, racional, ele se refugiou no delírio de Antonin Artaud, William Blake e Arthur Rimbaud, no surrealismo de André Breton, e também na obra de Reich, Jung, Freud e na busca dos desvãos e das imagens do inconsciente. “Rimbaud/ garoto-Panzer/ coxas douradas de mochileiro das estrelas/ puer da alquimia”, escreveu, em 1995.

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Cultivava uma notável independência de escolas, patotas e panelinhas. Em entrevista publicada em 1983, vociferava contra a cultura oficial: “A maioria do que você chama de “mandarins bem-pensantes da cultura” não passa de um bando de galinhas assustadas. Eles tentam fazer pressão sobre minhas assumidas irregularidades de comportamento como forma de me enquadrar. Se eu me enquadrasse, eu ganharia página inteira na imprensa conformista. Eles gostariam que eu me calasse sobre tudo, mas eu não me calo sobre nada. Para essa canalha, o meu pecado é ser poeta e intelectual na total insubordinação.”

Muito ligado ao que classificava como “mistérios” da vida, tinha ligação com o xamanismo, a umbanda, a cosmogonia indígena. Podia ser virulento e doce, mas nunca desatento. “Não devemos excluir autoritariamente, como censor barato, nem os que se dizem marginais e não são e nem os que pensam que são marginais e são escriturários.”

Uísquerdistas. Também não suportava ser obrigado a viver em associações, partidos políticos ou na política convencional. “Tive mais problemas com a Igreja e a esquerda do que com os milicos”, disse certa vez ao Estado. “A esquerda é muito moralista; costumávamos chamá-los de uísquerdistas.”

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No manifesto O Século 21 me Dará Razão, escrito em fevereiro de 1984, ele advertia contra o “sindicato policial do crime, seus gângsteres ministros, seus partidos de esquerda fascistas, suas mulheres navios-escola, suas fardas vitoriosas, seus cassetetes eletrônicos, sua gripe espanhola, sua ordem unida, sua epidemia suicida, seus literatos sedentários, seus leões-de-chácara da cultura, seus pró-Cuba, anti-Cuba, seus capachos do PC, seus bidês da direita, seus cérebros de água choca”.

Contra a literatura sedentária, Roberto Piva caminhava quase sozinho pelas noites de São Paulo, pelo centro da cidade – vivia num apartamento no bairro de Santa Cecília, soterrado por livros. A noite, segundo Piva, era “a noite mundana das boates, dos comércios escusos, das galerias suspeitas, dos bares abarrotados de gente anônima, das saunas de subúrbio, dos lascivos mictórios públicos e sobretudo das calçadas urbanas, onde se cruzam bêbados, artistas, poetas, putas, michês e outros seres estranhos à luz do dia”, segundo escreveu de sua obra a ensaísta Eliane Robert Moraes.

Trecho extraído de Poema Porrada:

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Eu estou farto de muita
coisa
não me transformarei
em subúrbio
não serei uma válvula sonora
não serei paz
eu quero a destruição
de tudo que é frágil:
cristãos fábricas palácios
juízes patrões e operários
uma noite destruída cobre os dois sexos
minha alma sapateia feito louca
um tiro de máuser atravessa o
tímpano de
duas centopéias
o universo é cuspido pelo cu
sangrento
de um Deus-Cadela
as vísceras se comovem
eu preciso dissipar o encanto do meu velho
esqueleto
eu preciso esquecer que existo
mariposas perfuram o céu de cimento
eu me entrincheiro no Arco-Íris
Ah voltar de novo à janela
perder o olhar nos telhados
como
se fossem o Universo
o girassol de Oscar Wilde
entardece sobre os tetos
eu preciso partir um dia para muito longe
o mundo exterior tem pressa demais para mim
São Paulo e a Rússia não podem parar
quando eu ia ao colégio Deus tapava os ouvidos para mim?


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