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Fernando Gabeira: A política da carne

Além do produto brasileiro, o que está em foco é o caráter dos funcionários do governo

Por Augusto Nunes Atualizado em 30 jul 2020, 20h59 - Publicado em 24 mar 2017, 13h49

Publicado no Estadão

Escândalos, como esse da carne, às vezes me alcançam no interior, com precária conexão. Na falta de detalhes, começo pelas ideias gerais. Por exemplo: como alimentar quase 10 bilhões de pessoas no meio do século?

Já é uma tarefa muito complexa – no meu entender, impossível – sem a produção de proteína animal. Há quem discorde disso e acredite que seria possível substituí-la. Mesmo assim, sempre haveria gente comendo carne por escolha.

Vegetarianos e carnívoros estão muito mais unidos do que se pensa quando se trata de segurança alimentar.

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Em 2006, na Califórnia houve uma grande contaminação do espinafre produzida pela bactéria Escherichia coli (E.coli). Outras se verificaram nos EUA e no mundo.

O sistema de produção e distribuição de alimentos conseguiu ampliar a oferta, reduzir os preços e certamente livrou o planeta de muitas fomes. Já se produzem 20% mais calorias do que as necessárias para alimentar todo o mundo, apesar de um em cada sete habitantes do planeta ainda não ter o que comer.

Essa conquista mundial não seria possível sem produção em grande escala. E exatamente essa característica, que levou ao triunfo, é que revela seu ponto fraco: a vulnerabilidade diante de certo tipo de contaminação.

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Segundo o escritor Paul Roberts, autor do livro A Fome que Virá, as mesmas cadeias de produção que constituem o supermercado mundial, e são capazes de colocar frutas, hortaliças e carnes nos dois Hemisférios em qualquer estação do ano, são um campo favorável para a expansão de patógenos alimentares como E.coli e salmonela.

O problema revelado pela Operação Carne Fraca ainda é de uma fase mais atrasada. É da corrupção de fiscais, algo que também já aconteceu em muitos países do mundo.

O abalo na credibilidade do sistema brasileiro foi inevitável, por vários fatores. O primeiro é que existe insegurança planetária mesmo quando o controle é honesto. E os dados lançados pela Polícia Federal são graves, por diversos aspectos.

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As maiores empresas do Brasil estavam envolvidas. Elas podem dizer que casos de contaminação da carne são isolados. Mas suas ligações com a política são sistêmicas: a JBS, sobretudo, despeja milhões em campanhas eleitorais.

O relatório da Polícia Federal foi atacado por suas fragilidades: mistura da carne com papelão, algo que não parece viável, assim como apontar o ácido ascórbico como fator cancerígeno. No entanto, no mesmo relatório havia denúncias graves.

Uma delas é a presença de salmonela na carne. O governo afirma que é um tipo de salmonela tolerado. Duvido que os consumidores aceitem comer uma salmonela inofensiva – o que é até contestado cientificamente.

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Houve outra denúncia, que passou em branco: o uso para consumo humano de animais não abatidos, mas mortos em outras circunstâncias. Isso é grave e, sobretudo depois da vaca louca, tem de ser fiscalizado com rigor.

Para sair dessa maré negativa no mercado internacional serão necessárias firmeza e transparência. Seria bom descartar teorias conspiratórias. Em 2006 vivemos um momento em que havia realmente algo inventado lá fora. Foi quando o Canadá insinuou que havia doença da vaca louca no Brasil. Foi uma pequena batalha diplomática. Lembro-me de que, apesar de vegetariano, participei de uma comissão que visitou a embaixada, foi ao Itamaraty e se preparava até para defender a carne brasileira lá mesmo, no próprio Canadá.

Esporadicamente, com uma ou outra notícia esparsa de febre aftosa, novas pressões vieram sobre o Brasil. Eram pressões positivas. Pediam o rastreamento do gado, um chip que contivesse as informações essenciais sobre o animal que seria abatido.

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Alguns reagiram com a teoria conspiratória, pensando que era algo imposto por concorrentes para encarecer a carne brasileira. Uma década depois, os chips de rastreamento são vendidos à vontade, até pela internet. E fortalecem o sistema de controle.

Quando ficar claro, se ficar, que o problema é a escolha de fiscais por partidos políticos e essa relação for detonada, creio que o caminho para retomar a credibilidade se abre. De nada adianta impressionar os compradores estrangeiros com nossa estrutura física. Se acharem que a fiscalização depende de políticos, a desconfiança vai prevalecer.

De Luiz Eduardo a Petrolina, da Chapada dos Veadeiros ao Vale do Gurgueia, o agronegócio brasileiro que tenho visto é uma história de sucesso. Mas as empresas da carne que compram fiscais vão no sentido oposto de quem se garante pela competência. Isso pode representar um lucro. Mas estrategicamente conduz a um prejuízo sistêmico, a um abalo na exportação nacional. Ao darem as mãos aos partidos políticos, os grandes produtores de carne escolheram o caminho oposto ao da credibilidade.

É impressionante a cultura da dependência no Brasil. Mesmo um setor que poderia passar sem o governo não só se financia com dinheiro público, como destina uma parte para o processo eleitoral.

As delegações estrangeiras conhecem o equipamento instalado no Brasil para a produção da carne. O grande problema é a confiança na fiscalização local.

Dificilmente um país pode controlar todas as suas exportações. Segundo Paul Roberts, dos 300 milhões de toneladas de alimentos que os Estados Unidos importam, apenas 2% são fiscalizados. Não há fiscais para tudo.

Mas não é apenas a carne brasileira que está em foco, e sim o caráter dos funcionários do governo. Tanto no petróleo como na carne existem equipamentos e competência técnica. No entanto, os dois setores foram abalados pela corrupção política. Se Michel Temer quiser dar um na passo na recuperação da credibilidade, deve levar os embaixadores a uma churrascaria e dizer, como Rubem Braga diria: “This is not a pizza, this is a beef…”.

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