Em defesa do Saci
Um dos mais antigos e carismáticos personagens da cultura popular luta para sobreviver ao cerco da tribo dos politicamente corretos. Há mais de 500 anos colecionando estripulias nas matas tropicais, o brasileiríssimo Saci transformou-se repentinamente no alvo de ataques combinados. Uns querem reduzi-lo a sem-teto com o despejo arbitrário. Outros resolveram impor-lhe a perna mecânica […]
Um dos mais antigos e carismáticos personagens da cultura popular luta para sobreviver ao cerco da tribo dos politicamente corretos. Há mais de 500 anos colecionando estripulias nas matas tropicais, o brasileiríssimo Saci transformou-se repentinamente no alvo de ataques combinados. Uns querem reduzi-lo a sem-teto com o despejo arbitrário. Outros resolveram impor-lhe a perna mecânica recomendada a todo deficiente físico. E todos exigem que pare de fumar imediatamente: o Saci só pode continuar existindo sem cachimbo.
Cotado (muito merecidamente) para o posto de mascote da Copa do Mundo de 2014, está com a candidatura ameaçada de impugnação por inimigos convencidos de que um moleque negro, mirrado, um tanto irresponsável, pouco afeito a trabalhos regulares, perneta e tabagista não tem nada a ver com o País do Futebol. Pode perder a vaga para “Pelezinho”, uma espécie de neto bem comportado, para o “Mico Leão Dourado”, que só aparece de vez em quando, ou até para o “Zé Carioca”, nascido e criado nos Estados Unidos.
Mascote do centenário Sport Club Internacional, de Porto Alegre, está ameaçado de despejo por um certo macaco Escurinho. “O Saci tem rejeição por parte das crianças também por não ter uma perna. Sem uma perna, é visto como perdedor”, desandou numa entrevista Jorge Avancini, diretor de Marketing do clube, tentando explicar o inexplicável. Até agora, o Saci continua onde sempre esteve. Mas sem o cachimbo. “As crianças, para quem os mascotes têm mais importância, estão associando o cachimbo ao consumo de crack”, seguiu viagem Avancini.
O documentário Somos Todos Sacys, de Sylvio do Amaral Rocha e Rudá K. Andrade, conta a história desse ser encantado (e irresistivelmente encantador) que foi, é e deveria ser eternamente a cara do Brasil. Uma excelente oportunidade para a tribo dos preconceituosos conhecê-lo de fato e revogar restrições delirantes. São quase 50 minutos de cultura e história. Cada segundo vale a pena.
Somos Todos Sacys from Confraria Produções on Vimeo.
Lya Luft, neste trecho do artigo publicado na edição 2158 de VEJA, de 31 de março de 2010, alerta para os efeitos danosos do politicamente correto sobre a educação das crianças do Brasil.
“Uma sereia quer pernas para namorar seu príncipe na praia, mas o sacrifício é terrível, a cada passo de suas novas pernas, dores inimagináveis a dilaceram. Uma princesa, sua família, séquito e criados do castelo dormem um sono profundo, maldição de uma fada má, e só serão libertados pelo príncipe salvador – que, é claro, sempre aparece. Branca de Neve, Rapunzel e dezenas de outros personagens alimentaram nossa fantasia e continuam a alimentar a das crianças que têm sorte, cujos pais e escolas lhes proporcionam contato cotidiano com esses livros.
Porém, faz algum tempo, há um movimento para reformular tais relatos, tirando-lhes sua essência, isto é, o misterioso e até o assustador. Lobos seriam bobalhões e vovozinhas umas pândegas, só existiriam fadas boas, e as bruxas, ah, essas passam a ser velhotas azaradas. Até cantigas de roda seculares tendem a ser distorcidas, pois atirar um pau num gato é uma crueldade, como se fosse preciso explicar isso para as crianças saberem que animais a gente ama e cuida – se é assim que se faz em casa.
Vejo em tudo isso um engano e um atraso. Impedindo nossas crianças do natural contato com essas antiquíssimas histórias, que retratam as possibilidades boas e negativas do mundo, nós as deixamos despreparadas para a vida, cujos perigos entram hoje em seus quartos, rondam escolas e clubes, esperam na esquina com um revólver na mão de um drogado, ou de um psicopata lúcido e frio, sem falar nos insidiosos pedófilos na internet.
Estamos emburrecendo nossas crianças e jovens, mesmo querendo seu bem? E, afinal, o que será o seu bem? Ignorar o que existe de sombrio e mau, caminhar feito João e Maria alegrinhos, não abandonados pelos pais, mas procurando borboletas no mato? Receio que a gente esteja cometendo um triste engano, deformando histórias e até cantigas que fazem parte do nosso imaginário mais básico com arquétipos humanos essenciais”.