Editorial do Estadão: Os ventos do atraso
Os autores da ação tomam a História sob a pior perspectiva possível, a de um revisionismo contaminado pela revanche
O Sindicato dos Arquitetos e Urbanistas do Paraná ajuizou ação civil pública contra a União na Justiça Federal para que as fotografias dos ex-presidentes que governaram o País no período da ditadura militar (1964-1985) sejam retiradas da galeria de ex-presidentes no Palácio do Planalto. A ação foi distribuída para o juiz federal Marcus Holz, da 3.ª Vara Federal de Curitiba.
A ação civil pública, que também é subscrita pelo Centro Acadêmico Hugo Simas – da Faculdade de Direito da UFPR – e pelo Sindicato dos Servidores do Magistério Municipal de Curitiba, fundamenta-se na Resolução n.º 4 de 2013, por meio da qual o Congresso Nacional declarou a nulidade de sua sessão de 2 de abril de 1964.
Foi durante aquela sessão histórica que se declarou que o presidente João Goulart havia deixado vago o cargo de presidente da República. Assumiu a Presidência, então, o seu sucessor constitucional, o então presidente da Câmara dos Deputados, Ranieri Mazzilli.
“Na presente ação civil pública se pretende demonstrar que a presença dos retratos destacados distorce a história. Distorce a memória nacional. Nos faz crer que os militares ocuparam legitimamente o cargo de Presidente”, dizem os autores na petição inicial.
Evidentemente, o prosseguimento da ação civil pública não resiste ao mais primário escrutínio. Por sua pífia fundamentação jurídica, não deverá passar pelo crivo da primeira instância.
Ao propor o Projeto de Resolução, em novembro de 2013, o então senador Pedro Simon (PMDB-RS) visava apenas à “reconstituição da história”, um reconhecimento oficial de que não havia razões constitucionais para se apear o presidente João Goulart do poder em abril de 1964. Não se pretendia a impugnação de todos os atos do Congresso que se sucederam à sessão anulada, o que seria um total desvario.
Pois é exatamente isso que agora propõem os autores da ação civil pública no Paraná ao requerer o reconhecimento da “ilegitimidade” dos ex-presidentes Ranieri Mazzilli, Humberto de Alencar Castello Branco, Arthur da Costa e Silva, Emílio Garrastazu Médici, Ernesto Geisel e João Baptista de Oliveira Figueiredo.
Os autores da ação tomam a História sob a pior perspectiva possível, a de um revisionismo contaminado pela revanche. Tal abordagem empobrece um país ao obnubilar o conhecimento dos fatos históricos tal como se deram e impedir que as futuras gerações tirem deles as lições que as guiarão em um saudável processo de desenvolvimento como nação.
Baixar os retratos dos ex-presidentes que hoje figuram na galeria do Palácio do Planalto não tem o condão de apagar a memória de suas realizações, sejam elas boas ou ruins.
A violência de uma ditadura não haverá de ser reparada por uma sentença judicial. Os retratos devem permanecer onde estão como um registro de um período da nossa história que há de ser sempre lembrado pelo que tem a ensinar sobre a importância dos mais caros valores do Estado Democrático de Direito.
Sob inspiração dos mesmos ventos do atraso, a vereadora paulistana Sâmia Bomfim (PSOL) lidera uma “frente popular” que defende a troca dos nomes de logradouros públicos de São Paulo que “homenageiam figuras associadas à violação dos direitos humanos”. O primeiro projeto apresentado pela vereadora propõe a troca do nome da Rua Barão de Joatinga, na região central, por Rua Dandara de Palmares. Pedro Ramos Nogueira, o Barão de Joatinga, foi um político e fazendeiro proprietário de escravos no século 19. Dandara foi mulher de Zumbi, líder do Quilombo dos Palmares.
Em julho de 2016, o então prefeito Fernando Haddad (PT) sancionou uma lei de autoria do vereador Eliseu Gabriel (PSB-SP) que alterou o nome do Elevado Costa e Silva – o “Minhocão” – para Presidente João Goulart.
Casos assim traduzem um olhar enviesado da História, uma infeliz opção pelo obscurantismo, e não pelo conhecimento que se deve extrair de nossas mais duras experiências.