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Augusto Nunes

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Deonísio da Silva: Outro foro privilegiado, outra sentença

O povo já sabe: é mais fácil um camelo passar pelo buraco de uma agulha do que o Supremo condenar e Moro perdoar

Por Augusto Nunes Atualizado em 30 jul 2020, 20h49 - Publicado em 24 jul 2017, 16h06

Publicado no Globo

O português do Direito tem suas complexas sutilezas. Aqueles que exigem objetividade e lógica das sentenças judiciais deveriam dar uma espiada no étimo: sentença veio do latim sententia, do verbo sentire, sentir.

Lida a sentença, o leitor como que diz ao juiz a frase que o escritor italiano Luigi Pirandello, Prêmio Nobel de Literatura, tornou famosa: “Assim é se lhe parece”.

Na sentença em que condenou à prisão o ex-presidente Lula, o juiz Sergio Moro transcreveu excertos curiosos da miscelânea da defesa. Miscelânea veio do latim miscellanea, mistura descuidada de alimentos servidos aos gladiadores. Afinal, eles iam morrer.

Um dos advogados tentou desqualificar o juiz e todos os que o rodeavam com a expressão “região agrícola de nosso país” para referir-se a Curitiba, justamente uma das cidades mais modernas do Brasil, que tem servido de modelo de urbanismo a tantas outras mundo afora.

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E desde quando “agrícola” desqualifica alguma coisa? Oh, doutores urbanoides, não sabeis de onde vêm as frutas, as verduras, os ovos, o leite, e a carne que comeis? Das “regiões agrícolas de nosso país”.

O diálogo prossegue assim. Defesa: “Vossa excelência entende então que a participação da defesa é retórica?”. Juiz federal: “Não, doutor, eu só acho que a defesa está faltando com a educação. (…). Eu posso fazer minhas perguntas, a defesa vai permitir?”.

Como se vê, a palavra retórica não foi tomada pela defesa como arte de oratória, ferramenta de trabalho, mas como ofensa. Por sua vez, o juiz serve-se da ironia, modo de mostrar o avesso para que se possa ver mais facilmente o direito.

O assistente de acusação, então, diz: “Parece que não se respeita a autoridade do juiz do caso, isso não se faz, você fala sem pedir licença”. “Isso não se faz” é uma lei que não está escrita. Mas todos sabem o que não devem fazer.

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Reza o dito popular que “de cabeça de juiz, de urna e de fralda de neném, ninguém sabe o que vem”, mas o povo já sabe: é mais fácil um camelo passar pelo buraco de uma agulha do que o STF condenar e Moro perdoar.

De resto, ouvinte, telespectador ou leitor semelha muito o eleitor. Leitor e eleitor são, aliás, palavras cujos étimos indicam tarefas parecidas: ler, escolher e eleger, as três vindas do latim legere, colligere, eligere.

Diante do rádio, da televisão e do texto escrito, o leitor faz coisa semelhante àquela que faz na cabine de votação: faz a sua escolha, aquela que ninguém pode e nem está autorizado a fazer por ele.

Leigos, não apenas em Direito, leigos em tudo o que demande saber ler, são muitos os que agora discutem sentenças judiciais como se estas tivessem a simplicidade de receitas culinárias ou de livros de autoajuda.

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A novidade, porém, não é o fato de tantos se acharem qualificados para discutir sentenças judiciais, mas, sim, a preferência do ex-presidente Lula. Ele escolheu outro foro privilegiado: a multidão. É um caminho perigoso, embora tenha como propósito a garantia de impunidade.

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