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‘Ruas sem nome’, por Demétrio Magnoli

Publicado no Globo desta quinta-feira DEMÉTRIO MAGNOLI Procure no Google Maps. Na vasta faixa da Rocinha, apenas duas vias têm nome: a Estrada da Gávea, na superfície, e o Túnel Zuzu Angel, no subterrâneo. Os Correios não dispõem de um mapa de ruas da Rocinha. Na favela, só recebem cartas em casa os assinantes dos […]

Por Branca Nunes Atualizado em 31 jul 2020, 05h12 - Publicado em 11 out 2013, 09h37

Publicado no Globo desta quinta-feira

DEMÉTRIO MAGNOLI

Procure no Google Maps. Na vasta faixa da Rocinha, apenas duas vias têm nome: a Estrada da Gávea, na superfície, e o Túnel Zuzu Angel, no subterrâneo. Os Correios não dispõem de um mapa de ruas da Rocinha. Na favela, só recebem cartas em casa os assinantes dos serviços do Carteiro Amigo, empresa formada por antigos recenseadores do IBGE que cartografaram a área e criaram um cadastro informal de CEP. Amarildo de Souza morreu sob tortura, executado por policiais da UPP da Rocinha, porque não era reconhecido como indivíduo e cidadão, mas apenas como integrante de uma “comunidade”. José Mariano Beltrame narra a tragédia como um evento singular: o produto da ação de um bando de “maçãs podres” da PM. A narrativa verdadeira é outra: o destino de Amarildo evidencia o fracasso da política das UPPs.

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O conceito das UPPs não foi elaborado no governo de Sérgio Cabral, mas no de Anthony Garotinho, pelo então secretário de Segurança Pública Luiz Eduardo Soares, que tentou substituir a política de invasões de favelas pela implantação de unidades policiais permanentes. Garotinho interrompeu as iniciativas embrionárias, mas a ideia estava semeada: a presença policial deveria funcionar como passo inicial para a plena integração das favelas à cidade. Pacificadas as favelas, o Estado não mais teria desculpas para deixar de prover os serviços públicos universais a seus residentes. Cabral disseminou UPPs, mas pouco avançou na etapa seguinte. As ruas sem nomes oficiais são atestados eloquentes da recusa do poder público de cumprir suas obrigações.

Favela é a “outra cidade”, a cidade formada por ocupações, que carece de títulos de propriedade de terrenos e imóveis. Na novilíngua empregada por autoridades (e artistas), a palavra precisa caiu em desuso, cedendo lugar a “comunidade”, um termo que, tanto na Biologia quanto na Sociologia, não designa um espaço geográfico, mas uma coletividade distinta e singular. Involuntariamente, os inventores da nova palavra estão dizendo aquilo que, de fato, pensam: os moradores de favelas vivem (e devem viver) segundo normas particulares, diferentes daquelas vigentes na “cidade legal”. A causa mortis de Amarildo encontra-se exatamente nessa persistente rejeição do Estado a reconhecer os direitos de cidadania dos habitantes da “outra cidade”.

Para que as UPPs tenham futuro, explicou Soares numa entrevista concedida quase dois anos atrás, seria preciso “refundar” as polícias. “Enquanto uma UPP é criada, a PM continua incursionando em favelas de forma irresponsável, policiais militares criam novas milícias e promovem mais execuções extrajudiciais”, alertou o ex-secretário. Cabral soube converter o programa das UPPs em sedutor ativo eleitoral, mas recuou diante do imperativo de refundar as polícias, um passo que demandaria ousadas rupturas políticas. Beltrame aceitou conduzir uma política amputada, que ruma previsivelmente para o abismo. Como consequência disso, condenou-se ao papel deplorável que cumpre hoje, quando tenta enquadrar o assassinato de Amarildo na moldura da fatalidade.

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Na Zona Oeste, longe do foco das câmeras de TV, as milícias articulam-se à sombra das UPPs e disputam poder com o tráfico. Na Favela do Jacarezinho, que tem uma UPP desde janeiro, o comércio fechou as portas em 19 de abril, cumprindo ordens de traficantes que decretaram luto coletivo devido à morte de dois dos seus. Na Cidade de Deus, onde inaugurou-se uma UPP em 2009, crianças continuam a vender drogas no varejo. A casa de um sargento da PM na Praça Seca, no centro da Favela da Chacrinha, que serve como base da milícia local, foi pintada com o padrão de cores e a inscrição “UPP”. A mensagem, dirigida aos residentes, não exige esforço de tradução: os chefes da área avisavam que a “polícia do B” é uma costela da polícia oficial. A causa mortis de Amarildo está aí, na teia de relações que borra as fronteiras entre a polícia e o crime organizado.

Os registros estatísticos indicam que, somente em 2010, 854 pessoas — entre as quais, 463 menores — foram mortas em ações policiais no Estado do Rio de Janeiro. “Há duas mortes que precisam ser mais bem investigadas: a morte da pessoa e a morte do inquérito”, enfatizou o sociólogo Michel Misse, que participa da campanha Desaparecidos da Democracia. A corajosa juíza Patrícia Acioli foi executada em agosto de 2011 por policiais decididos a matar os inquéritos sobre a guerra suja nas favelas, que não foi interrompida pelas UPPs. Ela se tornou um cadáver ilustre sobre o pano de fundo do cortejo de mortos sem nome e, não poucas vezes, até mesmo sem corpo. Amarildo seria apenas um número adicional nas estatísticas macabras, não fosse a circunstância fortuita de que seu “desaparecimento” coincidiu com a onda de manifestações populares iniciadas em junho. Não, Beltrame: Amarildo não é uma mancha acidental no tecido limpo da política de segurança pública de Cabral.

“O importante agora é manter a integridade da UPP da Rocinha, que tem a aprovação da grande maioria dos moradores”, declarou Beltrame na hora da prisão dos dez policiais acusados de tortura, execução e ocultação de cadáver. A UPP da Rocinha foi inaugurada, com direito a discurso de Cabral, em setembro do ano passado. O comandante da UPP, agora afastado, está entre os indiciados. Ao longo dos últimos seis meses, segundo o inquérito da Polícia Civil, pelo menos 22 moradores sofreram torturas infligidas por policiais da unidade. O que significa, nesse contexto, “manter a integridade” da UPP da Rocinha? A linguagem orwelliana de Beltrame deve ser classificada com os adjetivos apropriados: acinte e desaforo. É essa “integridade” a causa mortis de Amarildo.

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Amarildo foi executado e seu corpo desapareceu porque ele residia numa rua sem nome, num lugar não cartografado pelos Correios. O inquérito policial não basta. Precisamos de um inquérito político.

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