Um cineasta famoso, um filho doente mental e uma tragédia
"Quando atendeu o telefone, Pedro Coutinho foi surpreendido pela voz aterrorizada de sua mãe: — Seu irmão matou seu pai!"

Publicado na edição impressa de VEJA
ANDRÉ PETRY
Quando atendeu o telefone, Pedro Coutinho foi surpreendido pela voz aterrorizada de sua mãe:
— Seu irmão matou seu pai! Está tentando me matar! Me ajude, por favor, me ajude!
A notícia brutal afogou-o numa torrente de adrenalina. Atônito, Pedro pediu à mãe que repetisse o que dissera. Em prantos, ela tornou a descrever o horror e implorar socorro. Eram pouco mais de 11 da manhã de domingo, 2 de fevereiro de 2014. Pedro passava o fim de semana com a filha de 13 anos no seu apartamento no centro de Petrópolis. Avisou à mãe que desceria imediatamente a serra em direção ao Rio de Janeiro e desligou, mas continuava incrédulo. Afinal, seu irmão, Daniel, 41 anos, um ano mais novo, morou quase toda a vida com os pais e nunca fora violento com eles. Agarrado a esse histórico pacífico, Pedro pensou que a mãe pudesse estar delirando. Temia ligar de volta para ela e correr o risco de complicar as coisas com um telefonema inoportuno. Fez uma ligação para o cineasta Eduardo Escorel, vizinho de bairro de seus pais, e pediu-lhe que fosse até o apartamento deles conferir o que se passava. Do Leblon, Escorel tomou um táxi na mesma hora. Ao chegar ao número 826 da Avenida Lineu de Paula Machado, na Lagoa, a paisagem humana em frente ao prédio, com uma aglomeração incomum de bombeiros e policiais, já denunciava a desordem da morte. Escorel cumpriu então o penoso dever de ligar para Pedro:
— Sinto muito, Pedro. As notícias são ruins — disse ele, desviando-se do açoite das palavras exatas.
— Meu pai morreu mesmo? — foi a angustiada pergunta de Pedro.
Aos 80 anos, o consagrado cineasta Eduardo Coutinho, diretor do premiado Cabra Marcado para Morrer, fora assassinado pelo próprio filho com duas facadas na barriga, que provocaram uma hemorragia letal. Figura única no cinema nacional, ele tinha uma cabeleira branca prestes a levantar voo, uma barba de anteontem, uma magreza de faquir e um olhar suplicante, quase desesperado, atrás de um grande par de óculos. Nos últimos tempos, andava doente e frágil, embora continuasse extraordinariamente inventivo. Havia dois anos, tivera uma pneumonia. Seis meses depois, outra, ainda mais grave. Tinha um enfisema pulmonar, herança de décadas de um tabagismo feroz, e dera para andar tateando pelas paredes e caindo a toda hora, em casa e na rua.
No apartamento da Lagoa, onde morava havia quatro décadas, Coutinho vivia com o filho Daniel e a mulher, Maria das Dores, a Dorinha, dezoito anos mais jovem. Por escassez de dinheiro ou de interesse, os estragos do tempo foram se perpetuando no apartamento, que lentamente adquiriu um aspecto de museu decadente. Nunca fora pintado, o assoalho estava gasto, havia infiltrações nas janelas, mas o que tornava o ar irrespirável ali dentro eram as demandas alheias. Encaramujado em si mesmo, Daniel não saía do quarto, mas sua presença imperava em todo o apartamento, com a exigência de que todos fizessem um silêncio de ferro. Os pais, indagados a que hora iam sair, tinham de dar uma resposta cirúrgica: “Às 3 horas”. Quem se debulhasse em imprecisões prolixas — “Acho que lá pelas 3 horas, talvez um pouco antes…” — era bruscamente intimado a calar-se para não ferir sua sensibilidade auditiva incomum. Um dia, Coutinho, a mulher e a cunhada Rita, reunidos no escritório, riram alto de alguma coisa. Daniel enfiou a cara na porta, espiou o grupo ostensivamente e saiu. Em seguida, ouviu-se um estrondo. Ele espatifara um vaso de cristal no chão da sala. Assustada, a mãe perguntou por que fizera aquilo. Recebeu uma resposta inesquecível: o esgar de um sorriso.
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