O debate recente sobre a meta fiscal de 2024 parece, à primeira vista, uma discussão bizantina: interessante para iniciados, mas irrelevante para o resto da humanidade.
Como já se sabia, a meta originalmente proposta para o orçamento federal de 2024 era inexequível. Assim sendo, por que mesmo deveríamos nos preocupar com alterações? Nessa linha, muitos argumentam que o melhor é reconhecer o problema, ao invés de bater a cabeça contra a metafórica parede, inclusive a incansável presidente do PT, sempre disposta a atirar contra qualquer coisa que se assemelhe, mesmo de muito longe, à responsabilidade fiscal.
Discordo por dois motivos. Em primeiro lugar, pela sinalização acerca do compromisso do governo com a trajetória das contas públicas. Um desequilíbrio inicial, que leve a um endividamento maior, pode ser compensado à frente por resultados mais sólidos, que ajudariam a limitar a reação negativa dos mercados, em particular a elevação da taxa de juros requerida para comprar os papagaios do governo.
Da forma como a coisa se desenvolveu, contudo, fica crescentemente claro, mesmo para quem enterrou a cabeça na areia ao longo dos últimos meses, que, apesar de promessas de ajustes, as juras só funcionam quando não ameaçam os interesses políticos de curto prazo. Dito de outra forma, se o preço do projeto de poder for a elevação persistente da dívida pública, não há a menor vergonha em aceitá-lo, mesmo porque quem paga a conta será sempre o contribuinte, jamais quem contraiu a dívida.
Em segundo lugar porque representa, na prática, o enterro precoce — ainda que esperado — do tal “novo arcabouço fiscal”, saudado com fanfarras pela atual equipe econômica, a despeito de suas muitas (e óbvias) falhas.
Parte desse aparato dizia respeito às políticas de correção requeridas caso os resultados se desviassem dos parâmetros definidos pelo “novo arcabouço” fiscal: limitações a novas despesas, a reajustes salariais para o funcionalismo, assim como outras medidas para desencorajar o mau manejo das contas públicas e indicar que os desequilíbrios seriam apenas temporários.
Ao alterar a meta para o ano que vem, o governo impede que os “gatilhos” acima sejam disparados. Trata-se de licença para matar na área fiscal: a qualquer sinal de dificuldade de cumprimento da meta, que possa levar a medidas corretivas (e provavelmente impopulares), “dobra-se a meta”, como ensinado pela nada saudosa presidente Dilma, abrindo espaço para novos abusos adiante. E dá-lhe juro mais alto…
O que nos traz de volta ao que me parece ser o ponto central da discussão: a inutilidade, ao menos por aqui, de criarmos regras para o gasto que entrem em conflito com os interesses eleitoreiros do governo de plantão. Não interessa a forma que tomem, cedo ou tarde, na ausência de reformas que reduzam o ritmo de crescimento da despesa obrigatória, o conflito ressurgirá e as regras serão devidamente substituídas por “novos arcabouços”, recomeçando, de um patamar pior, o velho jogo de sempre.
A única novidade hoje é a rapidez do processo: o “novo arcabouço” morreu antes de nascer, um recorde na nossa longa história de descarte de regras fiscais e motivo de orgulho para os responsáveis.
Publicado em VEJA de 10 de novembro de 2023, edição nº 2867