O ministro da Fazenda, Fernando Haddad, reclamou há pouco que “o Congresso também precisa ter responsabilidade fiscal”. A frase é quase certeira: não resta dúvida de que o Congresso, um dos poderes da República, não pode se comportar de maneira irresponsável; afinal de contas, deveria ser (embora na prática não seja) “sócio” do Executivo na gestão do país.
Há, contudo, dois problemas com a reclamação de Haddad. O primeiro é o uso do advérbio “também”, implicando que alguém, presumivelmente o Executivo, seria um campeão da responsabilidade fiscal. Nada poderia ser mais distante da realidade. Trabalho recente da Instituição Fiscal Independente (IFI), destacado em artigo de meu amigo Samuel Pessôa, traz números que apontam em direção diametralmente oposta.
O resultado fiscal oficial, estimado pela Secretaria do Tesouro Nacional, coloca no mesmo balaio receitas e despesas de naturezas diferentes. Há gastos e receitas que tipicamente ocorrem de maneira pontual, sem necessariamente se repetirem à frente. Nesse aspecto diferem muito de outros que normalmente prosseguem ao longo dos anos. Dito de outra forma, há gastos e receitas recorrentes e não recorrentes. Devemos nos preocupar muito mais com os primeiros do que com os últimos, pois apontam elementos de continuidade na evolução das contas públicas. A IFI fez um trabalho competente ao separá-los, de modo a melhorar a transparência dos números fiscais.
“O ministro da Fazenda presidiu a mais relevante piora das contas públicas em um quarto de século”
Há também receitas e despesas que flutuam ao sabor do ciclo econômico. Com o país crescendo mais (ou menos) do que costuma, resultados fiscais podem ser melhores (ou piores) do que em condições normais. Para isolar esses efeitos, a IFI buscou também corrigir os impactos do ciclo econômico.
As estimativas de resultado recorrente, ajustadas ao ciclo econômico, são conhecidas como “resultado estrutural”, e nos oferecem uma métrica mais útil para avaliar como evoluem as contas públicas em “condições normais de temperatura e pressão”. No caso do trabalho da IFI, revelam que entre 2022 e 2023 o resultado estrutural do governo federal saiu de um superávit equivalente a 0,2% do PIB para déficit de 1,6% do PIB. A variação de um para outro, 1,8% do PIB, definida como impulso fiscal, é a maior já registrada na série histórica que se iniciou em 1997.
Vale dizer, o ministro da Fazenda presidiu a piora mais relevante das contas públicas em um quarto de século, o que não o qualifica exatamente como um paladino da responsabilidade fiscal, classificado para oferecer lições de moral ao Congresso.
O segundo problema, associado ao primeiro, é a exigência permanente de novas receitas ao Congresso para financiar gastos cujo crescimento resulta de medidas do próprio Executivo, além da falta de apetite para encarar reformas que poderiam mudar esse estado de coisas, como ficou claro na desavença entre o ministro da Fazenda e a ministra do Orçamento acerca da política do salário mínimo. Reclamar, portanto, da resistência do Congresso a aumentar impostos, ao mesmo tempo que nada faz para conter o gasto, é apenas hipocrisia.
O tal “novo arcabouço” é só a homenagem que a gastança presta à responsabilidade fiscal.
Publicado em VEJA de 17 de maio de 2024, edição nº 2893