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Trechos inéditos de livros que estarão em breve nas prateleiras. Editado por Luísa Costa.
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No novo livro de Marlon James, os mortos falam – e muito bem

Vencedor do Man Booker Prize, 'Breve História de Sete Assassinatos' chega às livrarias brasileiras neste mês

Por Luísa Costa 9 jul 2017, 19h32

Muito aguardado na Festa Literária Internacional de Paraty (Flip), o escritor jamaicano Marlon James surpreende com sua narrativa em Breve História de Sete Assassinatos (Ed. Intrínseca, 736 págs., R$ 74,90). Diversas vozes se misturam ao narrar um período instável da Jamaica, em Kingston, às vésperas das eleições, quando um atentado feriu o cantor Bob Marley.

Na obra, vencedora do Man Booker Prize, até os mortos falam – e dão sua soturna visão do mundo dos vivos, que ficaram. Confira o primeiro capítulo do livro, que chega às livrarias neste mês.

 

“Sir Arthur George Jennings

Escuta.

Os mortos nunca param de falar. Talvez porque a morte não seja de fato o fim, só uma coisa parecida com ficar de castigo no colégio. Você sabe muito bem de onde veio e é de lá que você está sempre voltando. Você sabe muito bem para onde está indo, mas parece que você nunca consegue chegar e, quando percebe, você está morto. Morto. Parece uma coisa definitiva, mas é só um adjetivo que deveria ser verbo. Você se depara com outros homens mortos há muito mais tempo do que você, caminhando sem parar embora não tenham para onde ir, e você os escuta uivar e sibilar porque nós somos todos espíritos, ou pensamos que somos todos espíritos, mas no fim das contas só estamos todos mortos. Espíritos que invadem outros espíritos. Às vezes, uma mulher entra no corpo de um homem e geme como se estivesse recordando a sensação de fazer amor. Eles choram e gemem com força, mas é um som que entra pela janela feito um silvo, um sussurro debaixo da cama, e as crianças pequenas acham que tem um monstro lá. Os mortos adoram se deitar debaixo dos vivos por três motivos. (1) Passamos a maior parte do tempo deitados. (2) A parte de baixo da cama parece a tampa de um caixão, mas (3) tem um peso, o peso de um corpo humano que você pode invadir e deixar ainda mais pesado, e escutar o coração batendo enquanto você o vê pulsar, e ouvir as narinas soprando quando os pulmões empurram o ar, e invejar até mesmo o mais discreto dos suspiros. Não tenho nenhuma lembrança dos caixões.

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Estar morto é entender que morrer não é partir, é ficar em suspenso na imensidão. O tempo não para. Você vê ele se mover, mas você fica imóvel, feito uma pintura, feito o sorriso da Mona Lisa.

Mas os mortos nunca param de falar, e às vezes os vivos escutam. Era isso o que eu queria dizer. Quando você está morto, a fala se resume a uma série de tangentes e desvios e não há muito o que fazer a não ser se deixar levar e se deixar perder. Bom, pelo menos é isso que os outros fazem. O que eu quero dizer é que os falecidos aprendem com os falecidos, embora não seja assim tão simples quanto parece. Eu ainda podia escutar a mim mesmo afirmando para quem quisesse ouvir que eu não caí, que eu fui empurrado da varanda do Sunset Beach Hotel, em Montego Bay. E eu não podia simplesmente dizer fecha a matraca, Artie Jennings, porque todas as manhãs quando eu acordo ainda preciso colocar esse meu cabeção de abóbora esmagada no lugar. Mesmo agora, enquanto eu falo, consigo me ouvir falando naquela época, morou, malandragem?, o que significa que a vida pós-morte não é uma cena acontecendo, nem um bailinho transado. Tá vendo aqueles malandros ali de bobeira, meu chapinha? Eles nunca sacariam, e eu não posso fazer nada além de esperar pelo cara que me matou, mas ele não morre, só fica cada vez mais velho e segue trocando de esposa, e por mulheres cada vez mais novas, e se reproduzindo, uma verdadeira ninhada de retardados, e jogando o nosso país no buraco.

Os mortos nunca param de falar, e às vezes os vivos escutam. Às vezes ele me responde se eu digo alguma coisa bem quando os olhos dele começam a tremular no meio do sono, e ele continua falando até que sua mulher lhe dê um tapa. Mas eu prefiro ficar ouvindo os que estão mortos há muito tempo. Eu vejo homens vestindo calças esfarrapadas e longos casacos ensanguentados e eles falam, mas começa a sair sangue pela boca e, minha nossa senhora, aquela rebelião de escravos foi mesmo um negócio terrível e aquela rainha, é claro, não serve mais para nada desde que a Companhia Holandesa das Índias Ocidentais começou seu declínio em relação ao Oriente, principalmente por causa da má qualidade dos produtos, e por que é que tem tanto crioulo que dorme em qualquer lugar de qualquer jeito e quando bem lhes dá na telha e eu misturo tudo, tanto que nem sei onde é que botei o lado esquerdo do meu rosto. Estar morto é entender que morrer não é partir, é ficar em suspenso na imensidão. O tempo não para. Você vê ele se mover, mas você fica imóvel, feito uma pintura, feito o sorriso da Mona Lisa. Nesse espaço, uma garganta cortada há trezentos anos e um bebê que morreu subitamente há dois minutos são a mesma coisa.

Se você não presta atenção no jeito que você dorme, acaba acordando na posição em que os vivos te encontraram. No meu caso, isso é deitado no chão, com o meu cabeção de abóbora esmagada, minha perna direita retorcida por trás das costas e meus dois braços dobrados de um jeito que não deveriam dobrar e, bem lá de cima, da varanda, eu pareço uma aranha morta. Estou lá em cima e aqui embaixo, e lá de cima eu me vejo do jeito que o meu assassino me viu. Os mortos se lembram de um movimento, uma ação, um grito, e eles vivem tudo de novo num piscar de olhos, o trem que não parou de correr até sair dos trilhos, o peitoril daquele prédio a dezesseis andares de altura, o porta-malas ficando sem ar. Os corpos dos bandidos estourando que nem um balão furado, cinquenta e seis balas.

Ninguém cai desse jeito se não for empurrado. Disso eu sei. E eu sei o que você vê e como é que você se sente, um corpo que cai lutando contra o ar até o fim, tentando se agarrar a qualquer pedaço de nada, implorando pra que uma vez, porra, só dessa vez, Jesus, seu chorão, filho de uma puta de quinta categoria, só dessa vez o ar te segure. Aí você cai numa cova de um metro e meio de profundidade ou num piso de mármore a cinco metros de altura, e ainda está lutando quando o chão se levanta e bate em você porque simplesmente cansou de esperar por sangue. E continuamos mortos, mas acordamos. Eu, uma aranha esmagada; ele, uma barata queimada. Não tenho nenhuma lembrança dos caixões.

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Esta é uma história de vários assassinatos, de garotos que não significavam nada pra um mundo que nunca para de girar. Mesmo assim, cada um deles, quando passou por mim, trouxe consigo o aroma agridoce do homem que me matou.

Escuta.

Os vivos esperam para ver no que vai dar porque eles se iludem achando que têm tempo. Os mortos veem e esperam. Perguntei uma vez à minha professora da Escola Dominical: se o paraíso é o lugar onde existe a vida eterna, e o inferno é o oposto do paraíso, o que é o inferno? Um lugar para diabinhos como você, ela respondeu. Ela ainda está viva. Eu a vejo na Casa de Repouso Eventide, ficando cada vez mais velha e cada vez mais esclerosada, sem saber o próprio nome e falando numa voz tão baixa que ninguém consegue ouvir ela dizendo que tem medo toda vez que anoitece, porque é quando os ratos vêm comer os dedos bons dos pés dela. Mas eu vejo muito mais do que isso. Olhe com bastante atenção, ou talvez simplesmente para a esquerda, e você vai ver um país exatamente igual ao que era quando eu parti. As coisas não mudaram. Sempre que eu vejo as pessoas, elas estão do mesmo jeito que estavam quando eu parti; envelhecer não fez a menor diferença.

O homem que era o pai de uma nação, e que foi, para mim, mais pai do que o meu próprio pai, chorou feito uma viúva pega de surpresa quando soube que eu tinha morrido. Você nunca sabe de que modo os sonhos das pessoas se depositam em você até que você se vá, e aí não resta nada a fazer além de ver as pessoas morrerem de maneiras diferentes, devagar, órgão a órgão, sistema a sistema. Doenças do coração, diabetes, doenças que matam devagar, com nomes difíceis de dizer. Isso é o corpo se entregando à morte de um jeito impaciente, um pedaço por vez. Ele vai viver para ver as pessoas fazendo dele um herói nacional, e vai morrer como a única pessoa que acreditava que tinha fracassado. É isso que acontece quando você personifica suas esperanças e seus sonhos em uma pessoa. Ela acaba reduzida a um mero artifício literário.

Esta é uma história de vários assassinatos, de garotos que não significavam nada pra um mundo que nunca para de girar. Mesmo assim, cada um deles, quando passou por mim, trouxe consigo o aroma agridoce do homem que me matou.

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O primeiro grita até se esgoelar, mas o grito não passa por entre seus dentes porque eles o amordaçaram, e o tecido tem gosto de vômito e de pedra. E alguém amarrou firmemente as mãos dele às costas, mas elas pareciam estar soltas porque a pele tinha esfolado e o sangue lubrificava as cordas. Ele chuta com as duas pernas porque a direita está amarrada à esquerda, jogando terra um metro, um metro e meio para cima, e ele não consegue ficar de pé porque está chovendo lama e terra e poeira e pedra. Uma pedra acerta o nariz dele e outra bate em seu olho, e tem alguma coisa entrando em erupção, e ele grita, mas o grito vai até os lábios e volta como se fosse refluxo, e é a lama de uma enchente, e o nível da água sobe e sobe e ele não consegue mais ver os próprios pés. Então ele acorda e ainda está morto, mas não quer me dizer o seu nome.”

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