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Trechos inéditos de livros que estarão em breve nas prateleiras. Editado por Luísa Costa.
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‘Billy Lynn’ traz angústia e hipocrisia do heroísmo de guerra

'A Longa Caminhada de Billy Lynn' chega às livrarias neste fim de semana

Por Luísa Costa Atualizado em 30 jul 2020, 21h04 - Publicado em 13 jan 2017, 18h04

Em seu romance de estreia, o escritor Ben Fountain coloca, sem nenhuma piedade, o dedo na grande ferida da história americana recente: a Guerra no Iraque. Seguindo os passos de um adolescente de 19 anos, A Longa Caminhada de Billy Lynn (Ed. Intrínseca, 304 págs.), que chega neste fim de semana às livrarias, nos apresenta de maneira alucinada e desinibida os sentimentos de um jovem herói de guerra durante sua “turnê da vitória”.

O pretenso glamour de uma recepção midiática calorosa, que quer transformar a história de Billy e seu esquadrão em filme de Hollywood e usar sua imagem no intervalo do jogo do Dallas Cowboys, se mistura na cabeça do recém-herói com os horrores da guerra e seus ingênuos desejos adolescentes de liberdade – já ameaçados com a iminência do retorno à batalha.

Rico em suas imagens – embora igualmente gráfico em seus palavrões – a história também ganhou uma adaptação de mesmo nome para os cinemas, dirigida por Ang Lee. O filme não tem previsão de estreia no Brasil, mas você pode conferir o trailer internacional aqui.

Confira, em primeira mão, o capítulo inicial do livro:

“A coisa começa

Os homens do Bravo não estão com frio. É um Dia de Ação de Graças gelado e castigado pelo vento, e há previsão de chuva com granizo para o fim da tarde, mas o Bravo está bem aquecido com Jack Daniel’s e Coca-Cola graças ao épico arrastar do trânsito de um dia de jogo e ao frigobar da limusine. Cinco drinques em quarenta minutos são o que está, provavelmente, incitando a sensação de calor, mas Billy precisa de um descanso depois do saguão do hotel, onde grupos de cidadãos agradecidos e agitados pelo excesso de cafeína apareceram aos saltos bem no meio de sua ressaca. Teve um cara em particular que colou em Billy, um ser humano pálido e esponjoso como um bolinho, enfiado em uma calça jeans engomada e botas de caubói chiques.

— Eu mesmo na verdade nunca estive no Exército — confidenciou então o homem,  agitando-se e gesticulando com um copo gigante da Starbucks nas mãos —, mas meu avô foi para Pearl Harbor e me contou todas as histórias de lá.

E o homem embarcou em um discurso desconexo sobre guerra, Deus e pátria enquanto Billy relaxava e deixava as palavras rodopiarem e fazerem acrobacias em seu cérebro

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Deus

Graças a uma sorte do cacete, o assento de Billy será no corredor do Texas Stadium, o que significa que ele vai aturar a parte mais difícil desses encontros ao longo de quase toda a tarde. O pescoço dele dói. Billy até dormiu na noite passada, mas muito mal. Cada um daqueles cinco uísques com Coca-Cola o empurrou ainda mais para o fundo do poço, mas a visão da extensa limusine parando no hotel despertou nele uma porção de desejos inquietos, este Hummer branco-neve parecendo uma lancha, com seis portas de cada lado e janelas escuras para dar o máximo de privacidade.

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— É disso que estou fa-lando! — gritou o sargento Dime enquanto avançava para o bar.

Todo mundo está fazendo algazarra por causa daquela ostentação de cafetão, mas depois de destruir todas as esperanças de ter uma rápida recuperação Billy se deixa afundar em um pavor secreto e intricado.

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— Billy — diz Dime —, você está me deixando na mão.

— Não, sargento — responde Billy, apressadamente. — Só estou pensando nas líderes de torcida do Dallas Cowboys. — Bom garoto. — Dime ergue seu copo, depois faz uma observação casual, não direcionada a ninguém em particular: — O major Mac é gay.

Holliday solta um urro.

— Que droga, Dime, o cara está sentado bem aqui!

E, de fato, o major McLaurin está sentado no banco do fundo, observando Dime com toda a expressividade de um linguado congelado.

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— Ele não consegue ouvir nem uma palavra do que estou dizendo. — Dime ri. Ele se volta para o major Mac e reduz a velocidade de sua fala até o ritmo de um retardado: — MA-JORRR MAC-LAAAUUURIN, SE-NHOR! O SAR-GEN-TO HOLLI-DAY ES-TÁ DI-ZEN-DO QUE O SE-NHOR É GAY.

— Ai, merda — geme Holliday.

Mas nos olhos do major há apenas um brilho penetrante, então ele ergue o punho para mostrar a aliança. Todo mundo urra.

São dez passageiros dentro da limusine de puro luxo e conforto, os oito soldados restantes do esquadrão Bravo, seu assistente de escolta pessoal — o major Mac — e o produtor de cinema Albert Ratner, que no momento está alerta mexendo no BlackBerry. Contando com o coitado do Shroom, que morreu, e o gravemente ferido Lake, há duas Estrelas de Prata e oito de Bronze entre eles, todas as dez condecorações desafiando uma explicação coerente.

— O que você pensava durante a batalha? — perguntou a linda repórter de TV em Tulsa.

E Billy tentou. Deus sabe que ele tentou, ele nunca para de tentar, mas aquilo fica escorregando e deslizando, ziguezagueando até sair, o aquilo da coisa, a coisa, o impossível de ser descrito.

— Eu não sei direito — respondeu ele. — Basicamente era só aquele tipo de raiva que a gente sente no trânsito. Tudo estava explodindo e eles estavam atirando na gente e eu só ia em frente, eu realmente não estava pensando em nada. O maior medo dele até o momento em que o tiroteio começou era foder com tudo. A vida no Exército é terrível assim. Você faz uma merda, eles gritam com você, você faz mais merda e gritam mais um pouco, mas se sobrepondo a todas as merdas pequenas, insignificantes, idiotas e basicamente inevitáveis assoma a sempre presente perspectiva de uma merda que vai foder a sua vida, um fracasso tão profundo e abrangente que é como se destruísse toda a esperança de redenção. Alguns dias depois da batalha, ele andava pelo caminho de cascalho para ir comer um rango e ali estava ela, aquela sensação de folga ou desafogo, de um terrível fardo aliviado, e tudo sem exigir de Billy um esforço maior que o necessário para respirar. Essa sensação de ahhhhh, como se houvesse esperança para ele. Como se talvez ele não fosse completamente descartável. Naquele momento, a filmagem da Fox News estava viralizando e havia rumores de que o Bravo ia para casa, o tipo de boato suicidamente esperançoso no qual nenhum soldado em sã consciência ousaria acreditar, e então, veja só, com duas horas de aviso eles foram designados para Bagdá e dali cruzaram o oceano para a Turnê da Vitória.

Uma nação, duas semanas, oito heróis norte-americanos, embora tecnicamente não existisse nenhum esquadrão Bravo. São a Companhia Bravo, segundo pelotão, primeiro esquadrão, o esquadrão sendo constituído pelas equipes alfa e bravo, mas a Fox os uniu, batizando-os de esquadrão Bravo, e eles foram apresentados ao mundo dessa forma. Agora, no final da turnê, sentindo-se fraco, saciado, sonolento, pouco descansado e superproduzido, Billy foi ficando cada vez mais triste e nostálgico em relação ao começo. Eles foram empurrados para dentro de um avião C-130 no meio da noite e levantaram voo de Bagdá em uma amarga espiral de miséria. Shroom estava com eles, em um caixão coberto com uma bandeira, no fundo da aeronave. Durante todo o voo até Ramstein alguns Bravos estavam sempre sentados com ele, mas é nos outros que Billy pensa agora, os vinte e tantos civis de vários tons de pele e sotaques que se juntaram a eles para a viagem. Nada de espiões — eram rechonchudos demais para aquilo, seus sorrisos muito desatentos às desgraças do mundo, e assim que o avião decolou aqueles caras começaram a festejar muito. Uísque do bom, mais de dez caixas de som com música no último volume, uma floresta de charutos cubanos sendo acesos — a fuselagem logo foi tomada por aquela fumaça de caldeirão de bruxa. Descobriu-se que eram chefs de cozinha. Para quem? Os homens apenas sorriram. ‘Para a coalizão.’

Validação, redenção, a vida arrancada das mandíbulas da morte, tudo isso é algo muito poderoso.

Eles eram franceses, romenos, suecos, alemães, iranianos, gregos, espanhóis, Billy não conseguia discernir nenhum padrão ou sentido em suas nacionalidades, mas todos, sem exceção, eram amigáveis e mais do que generosos, ávidos por dividir suas bebidas e seus charutos com os soldados. Evidentemente, tinham ganhado muito dinheiro no Iraque. Um dos suecos abriu sua maleta de couro de bezerro e mostrou a Billy o tesouro em ouro que tinha obtido em Bagdá, muitos quilos de correntes, cordões e moedas, de tal pureza que

brilhavam em um tom mais alaranjado que dourado. Ali, entre a fumaça dos charutos e as gargalhadas brincalhonas, Billy havia levantado uma das correntes, analisando seu peso. Ele estava com dezenove anos e não tinha a menor ideia de que na sua guerra havia coisas como aquelas, e que pena para ele e para o restante do Bravo que ela não tivesse sido ganha nas duas semanas anteriores.

— É — disse Albert ao telefone.

Ele o tinha comprado especificamente no Japão, que está dois anos à frente de qualquer outro lugar na corrida pela superioridade dos celulares.

— Diga isso a ela, você pode dizer a ela que esse filme vai ser avassalador. Mas também vai trazer recompensas — continuou ele. Albert fica em silêncio por um instante. — Carl, o que eu posso dizer? É um filme de guerra… nem todo mundo sai vivo.

Enquanto isso, Crack está lendo em voz alta a seção de esportes do Dallas Morning News, recitando as probabilidades fornecidas pelo America’s Line, para que Holliday e A-bort consigam anotar suas apostas. Existem mais de duzentas maneiras de se apostar em um jogo de futebol americano, incluindo se a moeda lançada vai cair dando cara ou coroa, qual música do Destiny’s Child vai abrir o intervalo e em qual quarter a emissora que transmite a partida vai fazer a primeira referência ao presidente Bush.

Crack diz, como se estivesse lendo uma receita:

— O primeiro passe completo do Drew Henson vai ser em menos duzentos; incompleto, mais cento e cinquenta; uma interceptação, mais de mil.

— Incompleto — diz Holliday, anotando em seu caderninho.

— Incompleto — concorda A-bort, tomando nota em seu caderninho.

— E que tal o quarter em que a Beyoncé senta na minha cara? — diz Sykes.

— Nunca, porra — responde Holliday, sem nem piscar.

— Daqui a um milhão de anos — acrescenta A-bort, também inexpressivo.

Sykes está dizendo que, droga, tudo bem, ele vai aceitar aqueles números, quando Albert desliga o celular de forma brusca.

— Certo, pessoal, parece que a Hilary Swank está oficialmente interessada.

Ahnnn, uou, quem?

— Hilary Swank, que vaca — diz Lodis, cuspindo. — Por que ela está falando com a gente?

— Por-queeee — responde Albert, com vigor, ciente da animação que aquilo causaria no Bravo — ela quer interpretar ele. — E aponta para Billy.

O Bravo irrompe em gritos e vivas.

— Espera aí. Espera um pouco. — Billy está rindo com todo mundo, mas também está preocupado, já sentindo o potencial daquilo para humilhação em escala global. — Se ela é uma garota, então eu não vejo como…

— Na verdade — diz Albert —, ela está considerando interpretar Billy e Dime. A gente podia juntar os dois num papel só e então ela podia ser a protagonista.

Mais gritos, dessa vez direcionados a Dime, que apenas assente, como se estivesse bastante satisfeito.

— Eu ainda não consigo entender…

— Só porque ela é mulher não quer dizer que não consegue fazer isso — diz Albert a eles. — Meg Ryan era a atriz principal naquele filme de helicóptero, aquele que ela fez com o Denzel uns anos atrás. Ou ela pode interpretar feito um cara, porra, a Hilary ganhou a merda de um Oscar interpretando um cara. Quer dizer, interpretando uma garota que interpretava um cara, mas tanto faz. A questão é que ela não é só mais um rostinho bonito.

Outros com quem Albert está conversando: Oliver Stone, Brian Grazer, Mark Wahlberg, George Clooney. É uma história de heróis, não sem tragédia. Uma história de heroísmo enobrecido pela tragédia. Filmes sobre o Iraque têm ‘baixa performance’ nas bilheterias, e isso é um problema, de acordo com Albert, mas não um problema do Bravo. A guerra pode estar afundada até o pescoço em ambiguidades morais, mas o triunfo do Bravo destrói tudo isso. A história deles é uma história de resgate, com toda a potência psicológica de uma trama desse tipo. As pessoas reagem com intensidade a histórias assim, Albert disse a eles. Todo mundo se preocupa, todo mundo se sente pelo menos um pouco condenado  basicamente o tempo todo, mesmo os mais ricos, os mais bem-sucedidos, os mais seguros entre nós vivem em estados de perpétua ansiedade por mal conseguirem aguentar as pontas.

O desespero é só uma parte de ser humano, então, quando o alívio vem, em qualquer forma, como cavaleiros em armaduras brilhantes, digamos, ou águias digitalizadas mergulhando em um ataque nas encostas flamejantes de Mordor, ou com a cavalaria dos Estados Unidos batendo em retirada apressada de um azul longínquo, esse é um poderoso gatilho na psique humana. Validação, redenção, a vida arrancada das mandíbulas da morte, tudo isso é algo muito poderoso.

— O que vocês fizeram lá foi o resultado mais feliz possível dentro da condição humana — garantiu Albert a eles. — Isso dá esperança para a gente, a gente pode sentir esperança em relação às nossas próprias vidas. Não existe uma pessoa no mundo que não pagaria para ver esse filme.

Albert tem quase sessenta anos, um homem de ossos largos e corpulento, com uma nuvem rebelde de cabelo quase todo grisalho e costeletas de comprimento mediano, eriçadas como cercas vivas. Usa óculos de armação preta com lentes redondas. Masca chiclete. As mãos dele são grandes e ossudas, e moitas escuras de um matagal desenvolvido brotam de suas orelhas.

Hoje ele está usando uma camisa social branca com o colarinho aberto, um paletó azul-marinho forrado com um tecido escarlate, um sobretudo de caxemira preta e um cachecol também de caxemira, além de mocassins lustrosos e elegantes que parecem feitos de barras de chocolate maleáveis.

Esse fogo cruzado entre desalinho e graça faz com que a fascinação de Billy nunca termine, e disso ele infere uma mundanidade que poderia comer o Bravo no café da manhã e engolir seus ossos. Este é um homem que telefona diretamente tanto para Al Gore como para Tommy Lee Jones e cujos filmes foram protagonizados por astros milionários como Ben Affleck, Cameron Diaz, Bill Murray, Owen Wilson, dois dos quatro irmãos Baldwin e por aí vai, todos os quais, infelizmente, já tinham compromissos ou não estavam interessados em um trabalho em que os artistas escalados ocupariam posições equivalentes.

— A gente vai fazer disso um Platoon — diz Albert na ligação seguinte.

— Um bando de estrelas, porra, é isso que funciona. A Hilary está muito interessada.

Os Bravos escutam por um instante. Conversa de Hollywood. Tem seu próprio dialeto, rico em trocas tonais de humilhações, insultos, gritos e conversa mole.

— Sem chance. Prefiro ir para a cama com a Madre Teresa a fazer um filme com aquele cara.

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Os Bravos dão um sorrisinho malicioso.

— Ah, claro. É tipo fazer um enema quando você já tem um cateter enfiado no pau.

Os olhos dos Bravos se arregalam e eles riem disfarçadamente, deixando sair catarro dos narizes.

— Só uma batalha? Qual é, Larry, Falcão negro em perigo só teve uma batalha.

Olha, eu sei que é um filme de guerra, mas preciso de um diretor que consiga trazer um pouco de empatia para a história.

Pausa.

— Eu consigo aguentar os enemas, o que eu não aguento é o cateter.

Mais risos disfarçados. Lodis teria caído do lugar onde estava sentado se não estivesse de cinto.

— Olha só, Larry, a gente está se falando há dois dias. Meus garotos vão embora daqui a dois dias, e o contato vai ficar muito difícil depois disso. A não ser que os seus advogados queiram ir de paraquedas para uma zona de guerra.

— Está beeeem — retoma Crack, balançando o papel. — Will Drew Henson faz uma intercepção… é, menos cento e vinte, contra não, mais cento e cinco.

— Isso aí — concorda Holliday.

— Não — fala A-bort.

— Será que a Beyoncé vai me mostrar os peitos enquanto estiver sentada na minha cara? — solta Sykes, depois começa a cantar em um falsete estridente e com entonação de diva negra I need a soldier, soldier, need me a soldier, soldier boy

— Silêncio — ladra Dime —, o Albert está falando no telefone.

Os demais Bravos entendem isso como a deixa para gritar com Sykes. Cale a boca, imbecil, o Albert está no telefone! Cale a boca, idiota, o Albert está tentando falar! Enquanto isso, um utilitário emparelhou na pista ao lado, e mulheres, fêmeas de verdade, estão penduradas para fora das janelas gritando para o Hummer. Universitárias, talvez poucos anos mais velhas, e elas são exemplos de primeira daquele bando de peitudas americanas que correm fora de controle toda noite nos realities da TV.

— Ei — gritam elas enquanto o tráfego se arrasta. — Ei, vocês, seja lá quem forem, abaixem os vidros! Uhuuuuuuuu, vai, Cowboys! Abaixem o vidro!

Ai, Senhor, elas são bonitas e estão totalmente bêbadas, berrando, jogando o cabelo para todos os lados, como estandartes de guerra orgulhosos; elas são as garotas sem juízo dos sonhos mais ardentes do Bravo. Sykes e A-bort se enrolam com as janelas daquele lado e são severamente xingados por sua incompetência, então percebem que as malditas janelas estão com a trava de segurança acionada e todo mundo grita para a dianteira do carro, aí finalmente o motorista aperta um botão e os vidros descem e dá para ver as garotas murchando. Ah, soldados. Fuzileiros, provavelmente estão pensando, porque é tudo igual para elas. Não astros do rock, não atletas profissionais bem pagos, ninguém do cinema ou do mundo dos tabloides, só soldados viajando na aba de um milionário, como um ato de caridade chato do tipo ‘apoiem as tropas’. O Bravo tenta, mas agora as garotas estão apenas sendo educadas. A gente é famoso! Grita A-bort. Eles vão fazer um filme sobre a gente! As garotas sorriem, fazem que sim com a cabeça, olham para todos os lados da estrada, como se sondassem melhores possibilidades.

Sykes coloca todo o corpo para fora da janela e berra:

— É, porra, eu estou bêbado, meu bem, e também sou casado! Mas eu ainda vou amar você quando acordar feia de manhã!

Isso faz as garotas rirem e por um instante há esperança, porém Billy consegue ver o brilho nos olhos delas já se ofuscando.

Ele se encosta no banco e pega o celular; elas provavelmente não estavam falando sério mesmo. Atenção!, lê na mensagem da irmã, Kathryn:

deixa sua munição dentro do coldre, garoto

 

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Depois, uma de Pete, o marido valentão da outra irmã:

Come uma líder de torcida

Depois, do seu pastor, Rick, que nunca vai deixá-lo em paz:

Honrarei aos que me honram

E era só isso, mais nenhuma mensagem, ligação, nada. Porra, ele não conhecia ninguém? Afinal, ele é meio que famoso, pelo menos é o que as pessoas vivem dizendo, então seria de se esperar o oposto. O tráfego está andando e eles perderam as garotas enlouquecidas de vista, mas agora o estádio surge no horizonte, erguendo-se em meio à amplitude da pradaria suburbana como uma lua em quarto crescente inchada e com verrugas. Eles devem aparecer hoje em rede nacional, sem detalhes, ninguém sabe a manobra verdadeira. Pode ser que tenham que dizer algumas falas. Pode ser que sejam entrevistados. Há boatos de que vão participar do show que acontece no intervalo, o que faz crescer a esperança de que conheçam pessoalmente as garotas do Destiny’s Child, embora, na mesma proporção, se não ainda mais plausível, haja a possibilidade de eles serem adulados, bajulados, massacrados, ou, por outro lado, acossados a fazerem algo incrivelmente constrangedor e vergonhoso. A emissora de TV local já tinha sido ruim o bastante — em Omaha houve uma gravação de um Bravo muito constrangido ‘interagindo’ com o novo habitat dos macacos do zoológico, e em Phoenix eles foram levados a uma pista de skate onde Mango caiu de bunda no noticiário da noite. A humilhação sempre persegue o homem comum quando ele se aventura na televisão, e Billy está determinado a não deixar isso acontecer a ele, não hoje, não em rede nacional, não, senhor, obrigado, eu respeitosamente me recuso a agir como um idiota, senhor!

Essas possibilidades fizeram surgir em suas entranhas uma reclamação que parecia ar escapando de um ferimento feito por alfinete. Ele queria estar na TV e ao mesmo tempo não queria. Queria estar na TV desde que não se ferrasse e que isso pudesse ajudá-lo a transar, mas ver o estádio assomar do lado de fora de sua janela e atingir as proporções da Estrela da Morte fez com que ele se perguntasse se realmente estava pronto para aquele dia. Nas últimas duas semanas, se manter autoconfiante tinha sido uma luta, aquela sensação de nadar mantendo a cabeça bem fora da água. Ele é muito novo. Não sabe o sufi ciente. Sem contar as insignificantes corridas de carro das quais seu pai costumava ser o apresentador, ele nunca tinha estado em um evento esportivo profissional. Na verdade, ele crescera em Stovall, Carolina do Norte, apenas cento e trinta quilômetros a oeste, sem nunca ter posto os olhos no famoso Texas Stadium, a não ser pela versão editada da TV, e a primeira visão que teve do lugar parecia histórica, ou pelo menos se esforçava para ser. Billy estuda o lugar detalhadamente, com cuidado e atenção de verdade, formando a sua opinião quanto ao tamanho e à falta de graça, sua completa e irremediável feiura. Anos e anos de filmagens cuidadosamente enquadradas pela TV impregnaram o local com insinuações de mistério e romance, um tanto de orgulho estadual e nacional, alusões a vidas após a morte faraônicas, como sempre são inerentes às grandes construções públicas, tudo isso faz com que o estádio criado na mente de Billy seja como um canal ou um portal, uma passagem direta que leva a uma espécie de transcendência coletiva, e assim a mediocridade da vida real é um retorno horrível. Claro que sua obrigação é oferecer toda essa magnitude, mas o lugar parece um trabalho porco de fundo de quintal. O telhado é uma simples colcha de retalhos caseira de telhas descombinadas.

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 Há um declínio, uma decadência de meia-idade rumo a uma coisa que sugere panças moles e próstatas inchadas, corpos de baleias encalhadas arrastados pela gravidade. Billy tenta imaginar como o lugar devia ser quando estava novinho em folha, reluzente e tudo o que ele prometia nos velhos tempos — trinta anos atrás? Quarenta? O passado sempre é uma proposição incerta para ele, mas há um elo obscuro entre o jeito como ele se sente agora, olhando para o estádio, e os sentimentos que experimenta ao pensar em sua família. O mesmo peso, o mesmo torpor e melancolia, um tipo de pavor enjoativamente adocicado e emocional que é quase prazeroso, no sentido de que insinua algo real. Como se a tristeza fosse a verdadeira realidade. Sem jamais prestar atenção de verdade a isso, ele tinha começado a acreditar que a perda é a trajetória-padrão. Alguma coisa nova aparece no mundo — um bebê, digamos, ou um carro, uma casa, ou uma pessoa demonstra algum talento especial —, e com sorte e enormes investimentos de alma e esforço você pode conseguir manter o projeto em alta durante um tempo, mas, no final das contas, enfim ele vai sucumbir. Esta é uma verdade tão brutal e autoevidente que ele não consegue entender o porquê de ela não ser mais percebida, por isso ele desdenha dos usuais choque e ultraje públicos quando uma situação em particular vai para o saco. A guerra é uma merda? Bem, é. Onze de Setembro? Um trem vindo devagar bem devagar na sua direção. Eles odeiam nossas liberdades? É, eles nos odeiam de verdade agora! Billy suspeita de que seus companheiros norte-americanos sejam secretamente espertos, mas algo na terra está preso a um drama adolescente, a afetados fingimentos de inocência devastada e ao ato de se consolar revirando-se na lama de pena autojustificada.

— Merda — murmura alguém, uma interrupção no silêncio.

O primeiro rompante de entusiasmo que eles mostraram ao ver o estádio morreu em uma suspensão verbal. Talvez seja o tempo que os deixe para baixo, toda a escuridão de um inverno temporão ou, quem sabe, talvez seja a ansiedade antes de se apresentar ou uma pura e simples fadiga, o fardo de saber que muito será exigido deles hoje. O Bravo não fica muito bem em silêncio, de qualquer maneira. Conversa fiada e besteiras são mais o estilo de trabalho deles, porém o período de pavor introspectivo se encerra com o aparecimento de uma placa grande, cuidadosamente pintada à mão, que foi afixada a um poste na beira da estrada. ACABEM COM O ESTUPRO ANAL NO IRAQUE!, lê-se, e abaixo disso alguém rabiscou: Santa misericórdia!

 O Bravo urra.”

 

(As imagens que ilustram o post fazem parte da adaptação cinematográfica de A Longa Caminhada de Billy Lynn)

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