A tese que explica o ataque de Bolsonaro a Leonardo DiCaprio (e outros)
Caso não queira ficar cego em meio à fumaça, reflita sobre as estratégias políticas adotadas pelos populistas do século XX (e que ameaçam a democracia)
Está em ascensão o esforço intelectual de tentar compreender as atitudes obscurantistas de líderes populistas do século XXI, como Jair Bolsonaro, Donald Trump, Viktor Orbán, dentre muitos outros, todos ligados a ideologias de extrema direita ou extrema esquerda – mas cujos métodos (e muitas das intenções) descartam ambos os lados e possuem mesmíssimos objetivos. Na última quarta-feira (27) encerrei a leitura de um livro elucidador sobre a questão, La rabbia e l’algoritmo (em português, A Raiva e o Algoritmo), do escritor italiano Giuliano da Empoli. E que chegará ao Brasil em breve, pelo selo Vestígio da editora Autêntica, como Os Engenheiros do Caos (na França também saiu com tal alcunha: Les ingenieurs du chaos). Ambos os títulos transpiram não só o mote da obra, como o espírito de nosso tempo: engenheiros do caos têm dominado algoritmos para manipular a ira da população, em favor de agendas políticas radicais e esfumaçadas.
Para tanto, todavia, não se incomodam em adotar táticas antiéticas, imorais, quando não ilegais, como: a disseminação de mentiras; agressões gratuitas e não fundamentadas a figuras públicas; desculpas sem fundamento para evidentes incompetências do governo; a negação de fatos, de números, em prol de manobras ilusionistas que se assemelham ao de temidos Ministérios da Informação (e por isso todos eles procuram minar os alicerces do jornalismo, que se transforma assim em principal questionador de tais métodos). Nesse cenário se encontra o novo acinte de Jair Bolsonaro: o ataque, sem quaisquer provas, a ONGs, voluntários e até a Leonardo DiCaprio, que neste momento deve estar tomado por uma sensação que, em inglês, seria resumida num “WTF?!?!?”.
Em breve escreverei de forma mais aprofundada sobre a obra Os Engenheiros do Caos. Por ora, procuremos compreender a artimanha dos populistas da era conectada (sejam de esquerda ou direita; tanto faz, nesse ponto) de, sempre que seus governos se mostram capengas e incompetentes em um aspecto, elegerem um inimigo qualquer, um motivo aleatório, para desviar a atenção. Caso de como tem ocorrido no Brasil em relação a temas como: meio ambiente, direitos humanos, segurança pública, dentre outros; abrangendo tragédias frutos de tal inépcia, ou ainda das agendas esfumaçadas, radicais e violentas, como as queimadas na Amazônia, as presepadas nas relações internacionais, a falta de solução para a morte de Marielle.
Escreve Giuliano da Empoli em seu extremamente bem apurado livro: “No mundo de Donald Trump, de Boris Johnson e de Jair Bolsonaro, cada novo dia nasce com uma gafe, uma polêmica, a eclosão de um escândalo. Mal se está comentando um evento, e esse já é eclipsado por um outro, numa espiral infinita que catalisa a atenção e satura a cena midiática”; “Os defeitos e vícios dos líderes populistas se transformam, aos olhos dos eleitores, em qualidades”; “No entanto, por trás das aparências extremadas do Carnaval populista, esconde-se o trabalho feroz de dezenas de spin doctors, ideólogos e, cada vez mais, cientistas especializados em big data, sem os quais os líderes do novo populismo jamais teriam chegado ao poder”.
Empoli entrevistou esses políticos, como os membros do temível Movimento 5 Estrelas da Itália – um grupo similar ao novo Aliança pelo Brasil, de Bolsonaro, só que mais sofisticado (ainda mais em termos tecnológicos e intelectuais), e que por vezes se finge “de esquerda”. O escritor, contudo, foi bem além, ao revelar o nome de spin doctors, ideólogos e tecnocratas que estão por trás – e, em grande medida, controlam – dos novos governantes extremistas, populistas e, usualmente, reacionários (não, eles não são conservadores; “conservador” é outra coisa, basta estudar tal palavra para compreender). Em todo o mundo, dentre os tecnocratas, destacaram-se nos últimos anos figuras como Steve Bannon, queridíssimo da família Bolsonaro e, para Empoli, o “Trotsky da revolução populista”. Entre os ideólogos, nome forte no cenário brasileiro é o de Olavo de Carvalho.
A apuração de Empoli flagra características iguais dentre os envolvidos nesse “Carnaval populista”, e que são essenciais à manutenção do método. O grande mérito do trabalho é esmiuçar a máquina que está por trás do impulso à articulação de grupos como o Movimento 5 Estrelas e o Aliança pelo Brasil de Bolsonaro.
Para começar, todos os populistas.com mandam às favas a verdade, em seu conceito mais primário, de fato consumado e provado. Para eles, 1+1 não é 2. Se a Amazônia está queimando à frente, pode-se simplesmente dizer que não. Se há uma foto da Terra arredondada, pouco importa, podem gritar “a Terra é plana”. A cada dia esses líderes divulgam uma nova mentira, como forma de esconder verdades, e com o objetivo final de estruturar uma realidade paralela com a qual procuram iludir a população e, em especial, seus próprios eleitores. Para eles, nenhum problema 1+1 ser 328, contanto que a falácia se preste a conquistar o secto.
Por que essa realidade paralela é tentadora? O trunfo está na forma como ideólogos e tecnocratas decifram os humores das redes sociais. A base de Bannon, Olavo de Carvalho, Carlos Bolsonaro, do Movimento 5 Estrelas etc. é a seguinte. Não importa ter coerência, apoiar-se em fatos, estudar, possuir uma ideologia transparente perante o eleitorado. O que eles precisam é instigar as emoções mais afloradas, em especial a de raiva, a de ira, e depois radicalizar e canalizar esses sentimentos com o intuito de impor um controle social.
No passado recente, o do século XX, tal fórmula já foi adotada por comunistas, por nazistas, por fascistas e por populistas das décadas dos meados daquele período, que naqueles anos se baseavam em outras então novas tecnologias para executar tal estratégia: a propaganda em massa, o rádio, a TV. Assim formularam os Ministérios da Informação, que buscavam esconder verdades e tecer realidades ludibriadores.
Como fazem isso hoje, no século XXI? As redes sociais são terrenos perfeitos para tal, bem mais eficazes. Os algoritmos desses sites e apps não foram desenhados para privilegiar coerência, raciocínio lógico, conteúdo de qualidade. É o contrário disso. Para os algoritmos, o que vale é o sensacionalismo, em busca de compartilhamentos e curtidas. Há 10 anos, a tática buscava mexer com as emoções primárias para viciar os usuários nessas plataformas, levando-os a recorrer a elas com cada vez maior frequência. No entanto, os criadores das mídias sociais, em especial Mark Zuckerberg, do Facebook (como tratei em textos anteriores), já admitiram que perderam o controle dos algoritmos. Isso porque uma certa casta de políticos, ideólogos e tecnocratas os decifrou.
Bolsonaro, Bannon, Trump, o Movimento 5 Estrelas, Boris Johnson e outros descobriram que é possível explorar os algoritmos para: 1. Desvendar, por meio de ferramentas de big data, o que enerva a população; 2. Independentemente de suas próprias ideologias, como usar essa raiva, essa emoção, essa ira, para manipular usuários das redes para se comportar como querem; 3. Aí como utilizar isso para moldar realidades paralelas, não baseadas em fatos, nas quais conseguem guiar boa parte das pessoas na direção que bem entendem; 4. Com isso constroem uma base eleitoral enorme, que os leva ao poder; 5. Já no poder, sempre que o governo entrar em crise, criam uma nova mentira, uma nova teoria da conspiração (seja qual for), um novo alvo, um novo “inimigo”, que esteja ligada a alguma ira revelada por essa massa online, por meio de posts que os cidadãos colocam em seus perfis nas redes sociais.
Já viu Black Mirror? Eles agem exatamente como o “urso” falastrão, xingador e mentiroso Waldo, do episódio “The Waldo Moment” (3º da 2ª temporada).
O “inimigo” pode ser quem for. Numa hora, são “as feministas”. Noutra, “a mídia”. Aí vira mais específico: a Folha de S. Paulo. Quando indícios comprovam possíveis associações de políticos no assassinato de Marielle, cria-se uma nova teoria da conspiração para esconder os fatos. Aí o inimigo volta a ser “a mídia”, “a esquerda”, “os conspiradores”. Se números mostram que a Amazônia está queimando, primeiro tenta se afirmar que os dados são mentirosos. Depois, punem-se os cientistas que apuraram as informações. Se não dá mais certo, culpa-se um novo inimigo: pode ser o Greenpeace, a WWF, ativistas, quem for. Quando começam novos questionamentos, a tática se torna ainda mais extrema. A ferramenta de big data pode revelar que os fanáticos seguidores têm ira da elite intelectual, ou da elite artística, ou de ativistas, ou de uma soma disso tudo. Quem pode personificar os alvos intangíveis e ilógicos do ódio? É fácil um ideólogo ou um tecnocrata chegar, por exemplo, ao nome de Leonardo DiCaprio.
Nesse cenário, pouco importa aos envolvidos se isso é verdade ou não. Por isso que figuras como Bannon, Eduardo Bolsonaro, o próprio presidente Jair Bolsonaro, Trump (que se fez em cima da falácia de que Obama não teria nascido nos EUA, vale lembrar), Olavo de Carvalho, os integrantes do Movimento 5 Estrelas… todas essas já disseram, de alguma forma, algo como “não importa se isso é mentira, o que vale é a intenção”.
Sim, para eles, tanto faz se uma foto é forjada, se uma imagem não era bem daquele lugar, se um número não está certo. O que vale é criar uma realidade ilusória na qual tudo e qualquer coisa que dizem tem de ser tido como absoluta verdade. E se um aliado questionar isso? Esse também deve ser execrado, vira imediatamente o vilão do momento, torna-se alvo do enxame virtual conduzido por essas rainhas. Numa hora o vilão pode ser DiCaprio, noutra uma ex-aliada deles, como Joice Hasselmann. Coerência? Isso é desnecessário, para eles.
O assunto é complexo. Por trás de toda essa estratégia não há, como eles muitas vezes fingem ser, ignorantes que simplesmente se comportam como bufões nas redes. Nada disso. São mestres dos títeres virtuais.
Os spin doctors decifraram os algoritmos para construir, mesmo que ainda por trás das cortinas, seus Ministérios da Informação. Para entender mesmo a tática política até agora mais eficiente (só que também mais antiética e imoral) do século XXI, volto a indicar a leitura completa de O Engenheiro do Caos. Livro que serve de primeira apresentação ao preocupante assunto, pois nele são revelados os sujeitos que têm se articulado para instigar a ira na população. Indivíduos que identificaram, sim, uma justíssima raiva das pessoas diante da crescente desigualdade social, do esnobismo de uma elite, da mundialização do modo de viver do Vale do Silício. Contudo, transformaram essa raiva em um ódio ilógico, baseado em mentiras, sem qualquer meta, e que no fim pode acabar por resultar no mesmo que ocorreu em meados do século passado: a quase destruição da democracia.
Depois de ler O Engenheiro do Caos, vale ainda mergulhar ainda mais no tema. Uma falha da obra citada é mostrar fatos, mas sem refletir muito sobre, sem conjecturar. Por isso, logo após a leitura, pode-se emendar nas pesquisas de nomes como Byung-Chul Han, de livros e teorias brilhantes sobre as quais já escrevi neste espaço (como aqui e aqui), e Yuval Noah Harari, principalmente por sua obra Homo Deus.
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