Um mercenário nerd na Síria
As guerras da atualidade se tornaram um imã de malucos de todo tipo. Há os milhares de radicais islâmicos estrangeiros, muitos ocidentais, que se juntaram a grupos armados da Síria, especialmente do Estado Islâmico. E há, em menor número, alguns nerds treinados em combates de video-game que compram uma passagem aérea, uma roupa camuflada e […]

As guerras da atualidade se tornaram um imã de malucos de todo tipo. Há os milhares de radicais islâmicos estrangeiros, muitos ocidentais, que se juntaram a grupos armados da Síria, especialmente do Estado Islâmico. E há, em menor número, alguns nerds treinados em combates de video-game que compram uma passagem aérea, uma roupa camuflada e se mandam para zonas de conflito, sem ter a menor ideia do que pretendem fazer lá. Na verdade, querem apenas provar algo que não são: um jornalista, um abnegado disposto a ajudar um povo oprimido ou um mercenário sem pagamento. Kevin Dawes, americano de origem coreana, tentava ser os três. Ele chegou a frequentar a linha de frente na Líbia, em 2011, onde circulava com um fuzil sniper e um kit médico que ele não sabia usar, colocando a vida de muita gente em risco, inclusive jornalistas profissionais. Em uma ocasião, ele quase matou o fotógrafo brasileiro André Liohn. (O episódio é contado no livro Correspondente de Guerra, que Liohn e eu escrevemos a quatro mãos e que acaba de ser lançado pela Editora Contexto.)
Depois da Líbia, Dawes foi para a Síria. Lá, ele desapareceu.
O jornalista James Harkin tentou refazer os passos de Dawes na Síria para esta reportagem para a revista GQ. Harkin conta que Dawes chegou à fronteira da Turquia com a Síria em 21 de setembro de 2012, na cidade de Antakya. Seu objetivo era entrar na Síria para atuar como paramédico, mas não tinha ideia de como fazê-lo e nenhum contato com os grupos rebeldes. Dawes não tem formação nenhuma em atendimento à saúde. Tudo o que ele pensa que sabe, aprendeu em tutoriais do YouTube. Ele é um nerd do computador que frequentava fóruns da internet sobre guerras e armamentos, mas que era tão inconveniente e megalomaníaco que os outros o evitavam.
Quando chegou à fronteira entre a Turquia e a Síria, só havia dois amigos virtuais com os quais se comunicava regularmente. Mas ele queria provar para os outros frequentadores do fórum somethingawful.com de que estava falando sério quando dizia que entraria na Síria.
E ele entrou. Nunca mais se ouviu falar dele, com uma notável exceção. Em 2013, Fatima, mãe de um médico britânico chamado Abbas Khan que havia desaparecido na Síria naquele mesmo ano, viajou para Damasco em busca do filho. Encontrou-o em uma prisão do regime do ditador sírio Bashar Al Assad. Fatima conseguiu falar com o filho na prisão e, depois de muita pressão, obteve a promessa de que ele seria libertado. Em dezembro de 2013, porém, ele foi encontrado morto na sua cela, provavelmente executado. No encontro com sua mãe, porém, Khan contara que havia outro estrangeiro na mesma prisão, em outra cela. Era Dawes. Eles haviam conversado por entre as barras, mas foram obrigados a interromper a comunicação depois de serem espancados pelos guardas.
Dawes estava em muito mau estado na prisão, segundo o relato de Khan para a mãe. Uma reportagem do jornal francês Le Figaro afirmou, em março de 2015, que havia uma negociação secreta entre os governos dos Estados Unidos e da Síria para a libertação de um prisioneiro americano. Seria Dawes, ou algum outro desaparecido?
Pois e não é que hoje, quase quatro anos depois de ter desaparecido na Síria, Kevin Dawes foi libertado? Segundo o Ministério das Relações Exteriores da Rússia, ele já não está mais em território sírio e foi entregue às autoridades americanas. Ele foi primeiro levado para Moscou, onde foi entregue à embaixada americana, e já deixou o país.
Outros estrangeiros continuam desaparecidos na Síria, entre os quais o jornalista freelancer Austin Tice.
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