Uma revelação: até andarmos sobre duas pernas, a estrada foi sinuosa e não linear
Trata-se de uma descoberta que ilumina a beleza da evolução

Das aproximadamente 250 espécies de primatas existentes, os humanos são os únicos que evoluíram para se mover exclusivamente em postura ereta. A razão fundamental para essa transição evolutiva sempre foi um mistério para a ciência. Várias teorias foram propostas para explicar por que nossos ancestrais desceram das árvores e começaram a andar sobre duas pernas. Entre elas, destacam-se a libertação das mãos para carregar filhotes e outros objetos; a possibilidade de uma linha de visão aprimorada em terrenos abertos; e a melhoria da capacidade de arremessar projéteis. São, enfim, recursos de sobrevivência.
Uma pesquisa publicada na revista Plos Biology joga alguma luz no enigma, ao dar pistas de respostas para uma indagação fundamental: como os mamíferos passaram de uma postura esparramada, como os lagartos, para uma postura em cima de quatro patas, como cães e gatos, até chegar aos humanos bípedes, de andar que desafia a própria física? Imaginava-se uma toada linear, sempre avante. Não. A humanidade caminhou entre idas e vindas, avanços e recuos, até enfim equilibrar-se de modo vertical. “A progressão foi complexa”, diz Robert Brocklehurst, paleontólogo do Departamento de Biologia Evolutiva da Universidade Harvard, líder do trabalho.
Para avaliar as mudanças, a equipe de Brocklehurst analisou o úmero (osso do braço) de mais de sessenta fósseis e 140 animais vivos, incluindo mamíferos, répteis e anfíbios — e, claro, gorilas. Por meio de um software especialmente desenvolvido para a empreitada, com recursos da onipresente inteligência artificial, os especialistas mapearam a superfície de cada osso de modo a medir características como comprimento, distribuição de massa, alavancagem muscular e torção (o grau em que o osso se torce ao longo de seu comprimento). Essas características se correlacionam com modos específicos de mobilidade e permitiram reconstruir a postura e a locomoção nos fósseis.

Um deles, vindo de um parente próximo dos mamíferos modernos, mostrou-se particularmente revelador. Ele apresentou características totalmente eretas, sugerindo que essa adaptação se desenvolveu mais tarde do que as hipóteses existentes. Ou seja, seria a prova das idas e vindas na evolução do caminhar sobre duas pernas. No caso dos humanos, segundo os estudiosos, nossos antepassados andavam eretos apenas parte do tempo, combinando com deslocamento por árvores. Tinham, portanto, posturas intermediárias, com quadris e pernas adaptados ao solo, mas braços ainda longos para subir em árvores. Outro fator de influência foram as imensas variações ambientais na África, o berço da humanidade, com florestas que se transformaram em savanas e depois em florestas, novamente. Resultado: os hominídeos eram forçados à dupla adaptação: tanto ao ambiente terrestre (bípede) quanto ao arbóreo (quadrúpede).
O bipedalismo nos faz diferente dos animais — daí a repercussão da recente investigação, ao supor como fomos indo. “Caminhar é um feito mais engenhoso do que costumamos pensar”, escreve o americano Bill Bryson, evangelizador científico em Corpo – Um Guia Para Usuários. Equilibrados em apenas dois suportes, nossa existência é um desafio constante à gravidade. Como crianças pequenas graciosamente demonstram, caminhar é em essência uma questão de projetar o corpo adiante e deixar que as pernas se virem para acompanhar. Para o paleoantropólogo Daniel Lieberman, também de Harvard, “caminhar é como andar em pernas de pau”.
Não tem sido fácil. O bipedalismo, sublinhe-se, tem consequências, como qualquer pessoa com dor crônica nas costas e nos joelhos pode atestar, imaginando ser mal moderno, apenas, mas vem lá de trás. A adoção de uma pelve mais estreita para acomodar a ossatura trouxe uma quantidade imensa de dor e perigo à mulher no parto. Até tempos muito atuais, nenhum outro animal na Terra corria tanto risco de morrer no parto quanto um humano e talvez mesmo hoje nenhum outro sofra tanto. São os problemas derivados de uma qualidade humana, demasiadamente humana.
Publicado em VEJA de 27 de junho de 2025, edição nº 2950