Sinal amarelo para o verde
Nas últimas décadas, os avanços na proteção ambiental vinham ocorrendo. Com Trump, os recuos começaram. Com Bolsonaro, o Brasil tende a ir na mesma toada
A ideia de ambientalismo, o guarda-chuva da preocupação do ser humano com as reservas naturais do planeta, é jovem demais para ser tratada como um fato irrecorrível, uma vitória sem recuo possível. Foi apenas em 1962, com o livro Primavera Silenciosa, da americana Rachel Carson (1907-1964), que se estabeleceram as primeiras conexões entre meio ambiente, economia e bem-estar. Compromissos sólidos com aquilo que hoje denominamos “desenvolvimento sustentável” só brotaram em 1987, a partir do Relatório Brundtland. De lá para cá houve avanços extraordinários, acelerados pela Cúpula da Terra de 1992, popularmente conhecida como Eco 92, realizada no Rio de Janeiro, e que culminaram no Acordo de Paris, assinado em 2015 por quase 200 nações para frear mudanças climáticas, limitando o aquecimento global a apenas 1,5 grau. A providência evitaria catástrofes ambientais, como a elevação do nível do mar, e incentivaria a modernização da indústria. Nessa estrada luminosa, dá-se como certo, tal qual um mantra, a assertiva clássica do ambientalista americano Paul Hawken, um dos primeiros a tratar do tema, nos anos 1990: “O capitalismo produz riqueza a partir da estrutura disponível na natureza, que nem sempre pode ser reposta pelo homem. Destruir a natureza significa inviabilizar o desenvolvimento econômico da humanidade”.
Em que pesem os avanços notáveis, sempre haverá espaço para retrocessos — e 2018 foi um ano tristemente fértil nesse campo. Acendeu-se uma luz amarela em torno das questões sobre o verde, num embate radical liderado pelos Estados Unidos de Donald Trump. Os americanos deixaram o Acordo de Paris e, na semana passada, ratificaram essa postura ao fechar os olhos para o documento final da COP 24, reunida na Polônia, pelo qual a maioria das nações — incluindo o Brasil de Temer — voltou a se comprometer com as metas climáticas. Estados Unidos, Rússia, Arábia Saudita e Kuwait mostraram resistência. No governo de Trump, dois dos cargos mais altos da área de sustentabilidade estão em mãos, digamos, heterodoxas. No comando da Agência de Proteção Ambiental desponta Andrew Wheeler, ex-lobista do mercado de carvão. No Departamento do Interior, vê-se David Bernhardt, ex-lobista de petroleiras. Eles podem fazer um bom trabalho, mas a suspeição é imensa.
O Brasil de Jair Bolsonaro parece andar na mesma direção, alinhando-se a Trump, numa guinada histórica de sua política ambientalista. Nas últimas décadas, o país teve tal protagonismo no zelo com a natureza que se tornou uma referência internacional. Corre o risco de cair do pódio. O presidente eleito nomeou para o Ministério do Meio Ambiente o advogado Ricardo Salles, ex-secretário do governo de São Paulo. Além de ser réu por improbidade administrativa, acusado de manipular mapas de manejo do Rio Tietê, Salles é ligado a ruralistas, acha que o aquecimento global é uma questão secundária e não vem demonstrando intenção de respeitar os acordos firmados até agora. Se essa postura vingar — ressalve-se que é, por ora, apenas teórica —, 2019 verá o acirramento do conflito que opõe os cuidados com o ambiente à exploração desmedida. Com uma agravante: a posição do novo governo é capaz de desagradar até a representantes de peso do agronegócio, convencidos de que o conservacionismo não conspira contra seus empreendimentos. Mais que isso: a marcha a ré nas políticas ambientalistas poderá tirar o país da lista de parceiros comerciais de nações comprometidas com a sustentabilidade, como a França.
No atual cenário internacional, os mercados de porte investem cada vez mais em produtos ecologicamente corretos. Eles não têm a menor disposição de se ver envolvidos em escândalos relacionados a alguma produção originária de áreas desmatadas ilegalmente. Entre 2017 e 2018, cerca de 100 empresas multinacionais, entre as quais Unilever e McDonald’s, comprometeram-se, no “Manifesto do Cerrado”, assinado com ONGs e instituições ambientais, a não colaborar para a expansão da destruição daquele bioma. No documento, expressaram que dariam preferência a produtores que respeitassem ações sustentáveis. Ou seja, se o governo Bolsonaro afrouxar as regras, poderá levar à perda de transações com tais companhias — o que resultaria em perda de clientela para o agronegócio.
Com um discurso incendiário toda vez que tratava de ambientalismo na campanha, Bolsonaro nunca pareceu atento às consequências de suas posições. Ao falar, em um almoço com empresários em setembro, no Rio de Janeiro, sobre o compromisso com o clima firmado pelo Brasil há três anos em Paris, ele disparou: “O que está em jogo é a soberania nacional, porque são 136 milhões de hectares (da Amazônia) que perdemos ingerência sobre eles. Eu saio do Acordo de Paris”. Em nenhum momento Bolsonaro apontou de onde tirou a conclusão de que o documento obrigaria o país a ceder esses milhões de hectares. Não há no texto nenhuma menção à gerência de terras soberanas.
O desdém em relação à natureza intensificou a rixa entre fazendeiros e conservacionistas, pondo fim a um saudável diálogo estabelecido na última década. Um dos frutos dessa conversa civilizada foi a criação, em 2014, da Coalizão Brasil Clima, Florestas e Agricultura, movimento composto de entidades que lideram o agronegócio, o terceiro setor, ambientalistas e acadêmicos. Com passagem pelo Banco Mundial, o agrônomo André Guimarães, ativo membro da coalizão, acredita que os pronunciamentos do presidente eleito têm o potencial de repercutir negativamente tanto para a reputação do Brasil como para o mercado agricultor. “Sair do acordo seria um erro. Não somos os Estados Unidos de Trump. Carecemos de força econômica”, diz Guimarães. “Precisamos mostrar que esse seria um caminho que prejudicaria todos os setores.”
O cenário de extremos provocou alguns reveses no Brasil das eleições. Dados do Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais mostraram que o desmatamento na Amazônia cresceu 36% entre junho e setembro, no auge da campanha presidencial. Logo depois do primeiro turno, sedes e carros do Ibama e do ICMBio, órgãos que têm a função de fiscalizar ações no meio ambiente, foram incendiados no Amazonas e em Rondônia. No fim de semana do segundo turno, povos indígenas também se tornaram alvo de ataques — na madrugada após a vitória de Bolsonaro, a única escola e o único posto de saúde do povo indígena pancararu, em Pernambuco, foram incendiados. No âmbito externo, a imagem brasileira foi manchada pelas declarações do ainda candidato do PSL. Em setembro, o presidente francês Emmanuel Macron afirmou durante a assembleia-geral da ONU: “Não vamos mais assinar acordos com potências que não respeitem o Acordo de Paris”. Dois meses depois, com Bolsonaro eleito, Macron reiterou, na cúpula do G20: “Não podemos pedir aos agricultores franceses que mudem seus hábitos de produção para liderar a transição ecológica e ainda assinar acertos comerciais com países que não fazem o mesmo”.
Publicado em VEJA de 26 de dezembro de 2018, edição nº 2614