Série Brasil no Espaço: um pedaço de Marte no sertão nordestino
No coração da Caatinga, o Habitat Marte é a primeira estação de pesquisa e simulação do planeta vermelho no hemisfério sul

A distância entre a Terra e Marte varia de 54,6 milhões a 401 milhões de quilômetros, dependendo das posições orbitais dos planetas. Isso significa que uma viagem apenas de ida pode levar entre 3 e 4 meses e meio. No entanto, há um “pedaço de Marte” relativamente acessível aos brasileiros – e sem a necessidade de sair da Terra. Trata-se do Habitat Marte, uma estação localizada em uma propriedade rural no sertão do Rio Grande do Norte, a cerca de 100 km de Natal. O projeto simula as condições de vida e trabalho no planeta vermelho, com o objetivo de promover pesquisas e desenvolver tecnologias úteis tanto para a exploração espacial quanto para soluções aplicáveis à vida na Terra.
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Inspirado na Mars Desert Research Station, inaugurada em 2002 no deserto de Utah, nos Estados Unidos, o Habitat Marte iniciou suas atividades em 2017, com base nas pesquisas do professor Júlio Rezende, do Departamento de Engenharia de Produção da UFRN. Hoje, o espaço abriga colaborações com pesquisadores de instituições nacionais e internacionais, além de centros de pesquisa. Lá, são realizados treinamentos e experimentos focados na vida de astronautas, autosustentabilidade, saúde e agricultura.
Em quase oito anos de funcionamento, o projeto evoluiu de uma estrutura adaptada para um verdadeiro complexo. Primeiro veio o Habitat Marte, criado em um prédio já existente, seguido pela Lava Cave, construída em 2023, um habitat autossuficiente com coleta de água da chuva e painéis solares, instalado em uma formação rochosa e em 2024, foi concluído o Habitat Lunar, que apresenta um design espacial em formato de cúpula.
Segundo Rezende, mais de 1 milhão de reais já foram investidos na construção do espaço, que possui um custo anual de manutenção estimado em R$ 60.000. Com orçamento apertado e sem apoio fixo de instituições governamentais, o Habitat Marte depende da cobrança de taxas pelo uso do espaço e da disputa de editais de fomento para se manter ativo.
Apesar dos desafios financeiros, o projeto segue acumulando feitos. Mais de 180 missões já foram realizadas, resultando no desenvolvimento de mais de 200 protocolos espaciais, que vão desde métodos para preparar um café com segurança no espaço até estratégias para preservar a saúde mental dos astronautas em longos períodos de isolamento. Mais de 1.000 pesquisadores passaram pela iniciativa, incluindo Sian Proctor, astronauta americana selecionada como piloto da missão Inspiration 4, lançada em setembro de 2021.
O espaço também é utilizado para testes relacionados à produção de alimentos em ambientes controlados, uma estratégia essencial para a agricultura espacial, além de estudos para a criação de sistemas autossustentáveis. Essas iniciativas podem ser úteis tanto para futuras colônias no espaço quanto para comunidades em áreas remotas sem acesso a recursos básicos como água e energia. O Habitat também recebe estudantes de escolas públicas e privadas, oferecendo a eles a simulação de um dia no espaço e a experiência do cotidiano de um astronauta. “Quem sabe algum deles não se torna o próximo astronauta brasileiro?”, arrisca Rezende.
Longe de ser um luxo em meio a tantas demandas financeiras, a pesquisa espacial – e projetos como o Habitat Marte – representa um investimento estratégico no futuro científico do país. Missões análogas permitem testar exaustivamente tecnologias e protocolos antes de serem enviados ao espaço, além de proporcionar inovações que beneficiam a vida na Terra.
Sistemas autossustentáveis, novas estratégias de produção de alimentos, e métodos para gestão eficiente de água e energia renovável são soluções que ganham relevância diante das mudanças climáticas e da necessidade de aproveitar solos inférteis, seja na Terra, em Marte ou na Lua. “É curioso como às vezes esquecemos o quanto estamos conectados ao restante do Universo”, lembra Rezende. “De certa forma, nosso planeta é uma grande espaçonave viajando pelo cosmos. Perdemos essa noção, mas, em certa medida, somos todos um pouco astronautas”.
Série Brasil no Espaço: essa reportagem é a segunda de uma sequência de quatro matérias que buscam desmistificar a ideia de que o Brasil não faz ciência espacial. Hoje, o investimento nessa área de pesquisa é pequeno e o impacto internacional ainda não é tão amplo quanto o das grandes economias, mas consideramos importante mostrar que existem bons profissionais no Brasil e que, mesmo sem grandes apostas, há potencial para encontrar boas soluções e ganhar protagonismo nesse ambiente cada dia mais competitivo.