Reconstrução do Museu Nacional avança, mas jornada ainda é longa
Destruído por um incêndio em 2018, prédio histórico segue em busca de recompor um acervo que foi o maior da América Latina
![DE CARA NOVA - A fachada principal e o jardim frontal do palácio: entregues nas cores originais -](https://veja.abril.com.br/wp-content/uploads/2023/01/FACHADA-MUSEU-NACIONAL-veja_photo.alexferro.com_.br16012023.-0270.jpg.jpg?quality=90&strip=info&w=1280&h=720&crop=1)
A primeira semana de setembro de 2018 foi um tempo de más notícias — um período em que o Brasil mergulhou nas profundezas do descaso e da guerra política. Logo no dia 2, um incêndio de grandes proporções consumiu o Museu Nacional, no bairro de São Cristóvão, no Rio de Janeiro, envolvendo em chamas o que era o maior acervo de história de ciência natural da América Latina — cerca de 85% dos 20 milhões de itens ali acumulados desde 1892 foram destruídos. Quatro dias depois, o então deputado federal Jair Bolsonaro, em campanha eleitoral, sofreu um atentado a faca durante um comício em Juiz de Fora, em Minas Gerais. O resto é história. O ataque ao candidato ocupou as manchetes e engoliu o drama cultural e científico. O presente embaçara a memória de um país tão desmemoriado.
![veja_photo.alexferro.com.br16012023.-8401.jpg LEMBRANÇA - Setor de antropologia: armários retorcidos serão preservados -](https://veja.abril.com.br/wp-content/uploads/2023/01/veja_photo.alexferro.com_.br16012023.-8401.jpg.jpg?quality=70&strip=info&w=1024&crop=1)
A restauração do Palácio de São Cristóvão, que foi o lar das famílias real portuguesa e imperial brasileira até 1889, avança, mas ainda há uma longa jornada até a entrega completa das obras, postergada para 2027 em função da conjuntura econômica e das dificuldades na obtenção de recursos. VEJA foi convidada a percorrer o interior dos quatro blocos do complexo principal para ver de perto os danos, e sobretudo os detalhes de recuperação de partes do acervo. A reportagem também visitou o Horto Botânico, que abriga a Biblioteca Central do Museu Nacional, gerida pela Universidade Federal do Rio de Janeiro, além do canteiro onde está sendo construído o novo Campus de Ensino e Pesquisa, uma área do tamanho de quatro campos de futebol onde ficarão a reserva técnica, laboratórios e um caprichado centro para visitação.
Em setembro do ano passado, quando a tragédia completou quatro anos redondos, o trabalho fechou seu primeiro grande ciclo. A fachada e o jardim frontal, reconstruídos, foram expostos ao público em suas cores originais, amarelo ocre nas paredes e verde nas portas — com direito a recuperação de trinta esculturas de mármore italiano de Carrara que estavam na cobertura. As imagens autênticas passarão a integrar o acervo e poderão ser apreciadas de perto pelo público em exposições permanentes. Em seu lugar, no alto dos pórticos, estão instaladas réplicas fabricadas com tecnologia de impressão em 3D. “Nem a família imperial viu essa fachada tão bonita”, diz Alexander Kellner, diretor do museu e cicerone da visita. “Dom Pedro II, é notório, não era a pessoa que mais gastava nessas iniciativas de manutenção.”
![Crânio-de-11.500-anos-achado-em-MG-e-cabeça-reconstituída-de-Luzia,-a-primeira-b.jpg TESOURO - Luzia, o fóssil humano mais antigo do Brasil: parcialmente recuperado -](https://veja.abril.com.br/wp-content/uploads/2023/01/Cra%CC%82nio-de-11.500-anos-achado-em-MG-e-cabec%CC%A7a-reconstitui%CC%81da-de-Luzia-a-primeira-b.jpg.jpg?quality=70&strip=info&w=1024&crop=1)
O canteiro de obras fervilha no verão carioca. A ideia é entregar até fevereiro os telhados e a fachada do bloco histórico, à direita de quem encara o palácio de frente, setor que abrigava tesouros do período imperial. É por ali que os operários entram. O primeiro impacto é a asustadora quantidade de entulho que cobre os caminhos. Um olhar mais atento ao redor, contudo, revela as terríveis cicatrizes do fogo, que teria começado em um aparelho de ar-condicionado em razão de falha elétrica. Há sobrearcos das janelas enegrecidos pelas labaredas, pisos de cerâmica estourados e partidos, vigas de sustentação retorcidas pelo calor intenso.
O local onde ficava o setor de geologia ainda guarda os armários que abrigavam o respeitado acervo. Por ser basicamente formado por rochas e minerais, evidentemente mais resistentes, muito do que ocupava o agora emaranhado de gavetas e fileiras retorcidas de estantes metálicas foi resgatado. No setor de antropologia, onde ficavam os crânios e restos de povos originários que habitaram o país no passado, uma parte preciosa da coleção depositada na instituição não teve sorte — e queimou. Esse espaço, em especial, será preservado, estabilizado e envolto em vitrines de vidro como reminiscência, como um grito de basta ao desprezo, daquela fatídica noite que levou embora parte fundamental de uma instituição científica bicentenária.
![veja_photo.alexferro.com.br16012023.-8601.jpg RESGATE - O meteorito Bendegó (acima) e parte da coleção de Pompeia da imperatriz Teresa Cristina (abaixo): algumas relíquias sobreviveram às chamas -](https://veja.abril.com.br/wp-content/uploads/2023/01/veja_photo.alexferro.com_.br16012023.-8601.jpg.jpg?quality=70&strip=info&w=1024&crop=1)
Próximo às salas de antropologia estava um dos símbolos da coleção, os restos de Luzia, o fóssil humano mais antigo da América Latina. O esqueleto de mais de 10 000 anos, descoberto nos anos 1970, na região metropolitana de Belo Horizonte, foi inicialmente dado como perdido e depois parcialmente recuperado. A coleção antropológica da imperatriz Teresa Cristina, que inclui afrescos de Herculano de Pompeia, também foi salva. Outra relíquia, o meteorito Bendegó, encontrado em 1784 no sertão da Bahia, região da atual cidade de Monte Santo, passou incólume. Com mais de 5 toneladas, o maior já achado em solo brasileiro, foi levado ao acervo por dom Pedro II. Ainda há, porém, muito a ser feito. Uma campanha específica para esse fim — com o sugestivo nome de #recompõe — continua a buscar novas peças para a coleção.
![veja_photo.alexferro.com.br16012023.-8539.jpg FAGULHA - O teatro onde o fogo teria começado: triste memorial da tragédia -](https://veja.abril.com.br/wp-content/uploads/2023/01/veja_photo.alexferro.com_.br16012023.-8539.jpg.jpg?quality=70&strip=info&w=1024&crop=1)
O orçamento do projeto de reconstrução do museu é de 380,5 milhões de reais, com 64% do valor já captado. Esse montante será atualizado assim que o projeto da parte interna do palácio for finalizado, o que inclui um memorial no antigo teatro, onde os laudos técnicos indicam ter começado o incêndio. O planejamento para 2023 prevê ainda a entrega da obra de reforma e a ampliação da Biblioteca Central. “Quando o conjunto estiver pronto, transformaremos o palácio, novamente, numa área expositiva mais ampla, com segurança para o acervo”, diz o diretor Kellner. “Mas precisamos de recursos e, confesso, estou um pouco ansioso por ainda não ter ouvido a palavra museu no governo que se inicia.” Lugares de memória, os museus mantêm vivo o passado para ajudar a pensar o presente e definir o futuro. É fundamental preservá-los a qualquer custo, como retrato de um país que não pode ser esquecido.
Publicado em VEJA de 25 de janeiro de 2023, edição nº 2825