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Quilombolas do São Francisco sofrem com hidrelétricas e mudança climática

Antes uma comunidade próspera, Pixaim enfrenta há décadas os impactos de usinas, que reduzem a vazão das águas e alteram a ecologia aquática do local

Por Sarah Sax/ Mongabay
Atualizado em 4 jun 2024, 13h52 - Publicado em 17 jul 2020, 15h53

No século 19, escravizados fugidos dos engenhos de açúcar se refugiaram no exato local em que o Rio São Francisco se encontra com o Oceano Atlântico. Ali, entre as dunas móveis que caracterizam a paisagem, fundaram a comunidade quilombola de Pixaim, onde desenvolveram um modo de vida sustentável e sintonizado com a dinâmica do estuário, em permanente transformação.

Por gerações, eles dependeram inteiramente do São Francisco. Suas fontes de sustento eram as plantações de arroz nos brejos rio abaixo e a farta pesca de peixes de água doce rio acima. No entanto, demandas cada vez maiores de água pelas usinas hidrelétricas rio acima começaram a ameaçar o antigo modo de vida da comunidade – demandas que os especialistas preveem que devem aumentar nos próximos anos no Nordeste, uma das regiões climaticamente mais vulneráveis do país.

“Costumávamos pescar peixes de mais de 1 metro de comprimento, mas agora temos que subir mais o rio para encontrá-los”, conta Aladim, um dos moradores mais antigos do Pixaim. “Os peixes desapareceram, então as pessoas foram embora.”

De acordo com Aladim e Marise dos Santos Lima, guia de turismo ligada à Associação dos Informantes de Turismo de Piaçabuçu, cerca de metade da população quilombola já partiu para as cidades depois que suas duas fontes de subsistência – a pesca e o cultivo de arroz – tonaram-se insustentáveis. “Antes tinha cerca de cem famílias, agora tem só algumas”, diz Aladim. “Você tem sorte se tiver um filho e um neto que ficam aqui.”

A parte baixa do Rio São Francisco sofre com a redução da vazão há décadas devido à interferência das usinas hidrelétricas, do agronegócio e de outros interesses econômicos rio acima. Uma seca iniciada em 2012 – uma das mais severas das últimas décadas, talvez dos últimos cem anos – aprofundou ainda mais os problemas hídricos do estuário.

A seca, que durou vários anos, causou longos períodos de escassez de água, variabilidade e níveis e vazões imprevisíveis em todos os rios e reservatórios da região. Um quadro que levou à diminuição da geração de energia hidrelétrica, bem como ao aumento de conflitos entre os setores agrícola e elétrico. A seca reduziu tanto a vazão da água que “o mar comeu o rio”, diz Aladim.

“Nas últimas décadas, a Bacia do São Francisco sofreu mudanças substanciais devido a atividades humanas intensivas, tais como a canalização e o represamento do rio, e, mais recentemente, às mudanças climáticas”, explica Geórgenes Cavalcante, professor-adjunto de Oceanografia da Universidade Federal de Alagoas.

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A redução da vazão permitiu que o mar invadisse o leito do rio, aumentando a salinidade da parte baixa do São Francisco e afetando diretamente a produção de arroz, a pesca, o fornecimento de água doce e a saúde pública. A ecologia aquática também sofreu impactos, uma vez que populações de peixes e plantas foram deslocadas pelo sal do oceano e substituídas por espécies oportunistas invasoras.

“Rio da unidade nacional” reduzido pela seca

O São Francisco é um dos mais importantes rios brasileiros. É o mais longo curso d’água situado inteiramente em território nacional, com 2,7 mil quilômetros de extensão entre os planaltos do Sudeste e sua desembocadura entre os estados de Sergipe e Alagoas. A Bacia do São Francisco drena 644 mil quilômetros quadrados, quase um décimo do território brasileiro, e é habitada por 18 milhões de pessoas.

O rio é também uma das mais importantes fontes de energia no Brasil, em especial no semiárido nordestino. Mais de 40% da capacidade instalada de geração de energia na região vem de hidrelétricas. E, desse total, 86% vem de usinas como Sobradinho, Itaparica, Complexo Paulo Afonso e Xingó, todas no São Francisco.

Desde os anos 1950, as usinas reduziram a vazão no estuário em cerca de um terço – ao que se somam as secas cada vez mais intensas devido ao aumento do aquecimento global. De acordo com um estudo, Xingó, a 180 quilômetros da costa, teve sua vazão sazonal drasticamente reduzida desde que passou a operar com sua capacidade máxima, em 1994. Antes da construção da hidrelétrica, o rio naquele trecho oscilava ao longo do ano com uma vazão entre 800 a 8 mil metros cúbicos por segundo; hoje o que resta é um fluxo constante de cerca de 2 mil metros cúbicos por segundo.

“As hidrelétricas sempre mudam o curso natural dos rios onde são construídas”, diz Mário Barletta, ecólogo marinho da Universidade Federal de Pernambuco, no Recife. Isso pode ser especialmente prejudicial para os rios que passam por muitas variações em sua vazão sazonal, como o São Francisco. “Quando você muda o escoamento, muda todo o ciclo ecológico. Muitas pessoas acabam sendo impactadas por essas mudanças, sobretudo aquelas que dependem desses ciclos, como os pescadores”, diz Barletta.

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Para onde foram os peixes?

No Baixo São Francisco, as reduções na vazão do rio prejudicaram sobretudo os peixes que dependiam das flutuações sazonais regulares. Como resultado, algumas das espécies mais importantes para os pescadores tradicionais foram consideradas localmente extintas. “Grandes espécies migratórias, como o surubim (Pseudoplatystoma corruscans), o maior peixe do São Francisco, simplesmente desapareceram dessa região da bacia”, relata Paulo S. Pompeu, biólogo da Universidade Federal de Lavras (MG).

Outros estudos também mostraram uma redução na variedade de espécies de peixe como resultado dos impactos das usinas. Não está claro como, e se, os pescadores e a indústria pesqueira conseguirão se adaptar, especialmente com o agravamento da seca na região.

“Não podemos dizer que há menos peixe do que antes, mas, definitivamente, há outros peixes”, diz Igor da Mata Oliveira, engenheiro de pesca da Universidade Federal de Alagoas. “Por exemplo, o curimatã (Prochilodus nigricans). Esse peixe, dez anos atrás, era a espécie mais importante para a pesca. Agora, estamos observando que [quando comparada a] todos os recursos da pesca de água doce, a espécie representa menos de 3% do volume total pescado.”

No lugar do arroz, o sal

Aladim se lembra de um tempo em que costumava pescar peixes de água doce no rio e plantar arroz nos brejos próximos às dunas. Segundo ele, o cultivo do grão era especialmente comum ao longo dos últimos 15 quilômetros do rio, onde as águas do São Francisco se espalhavam num delta composto de pântanos férteis e lagoas. “Dez anos atrás ainda plantávamos arroz. Mas agora a água é muito salgada”, explica Aladim.

Não muito longe do Pixaim, ainda é possível ver as ruínas dos diques que antes cercavam as plantações de arroz. No lugar dos arrozais, coqueiros crescem às margens dos charcos abandonados. “O arroz não tolera o sal”, observa Igor Oliveira, da Universidade Federal de Alagoas. “Por causa do aumento da salinidade, o cultivo de arroz diminuiu, e os coqueiros tomaram o lugar.”

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Moradores da cidade próxima de Piaçabuçu, alguns quilômetros rio acima, agora estão vendo o que Aladim observou: o mar está correndo sobre o leito do São Francisco. “Com o avanço do Atlântico no curso do rio, a flora e a fauna mudaram claramente. É difícil encontrar peixes de água doce na região da foz, e a vegetação de água doce só pode ser vista quando subimos o rio”, diz Marise dos Santos Lima, guia de turismo em Piaçabuçu.

Um estudo recente revelou que, desde 2013, devido à seca, a redução da água que flui pela barragem de Xingó gerou um aumento significativo da salinidade até 9 quilômetros acima da foz do rio. Os níveis de sal nesse trecho excederam em muito os limites de segurança para o consumo humano, indicando que a água da região da foz pode não ser mais tão potável. Em Piaçabuçu e outras cidades da região, as prefeituras costumam lançar alertas para que os moradores fervam ou não bebam água dos lençóis devido ao sal.

Emergência hídrica

Embora as usinas hidrelétricas tenham causado o maior impacto nos regimes de vazão até agora, as alterações climáticas estão aprofundando o problema, de acordo com vários estudos.

“As mudanças climáticas desempenham um papel central nessa questão. Como as chuvas na bacia [do Rio São Francisco] devem diminuir, alterações nas características hidrológicas do rio devem se tornar ainda mais severas”, diz Paulo S. Pompeu, da Universidade Federal de Lavras.

Para 2100, projeções indicam altas temperaturas e padrões de chuvas significativamente reduzidos devido ao aquecimento global no Norte e no Nordeste do Brasil. A média pluviométrica anual poderá cair em até 50% de acordo com alguns modelos. As secas de 2003 a 2016 já fizeram com que 2.773 municípios e mais de 1,4 mil cidades nordestinas decretassem emergência hídrica – o que representa quase 80% da região.

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As mudanças climáticas também pesarão no Rio São Francisco nos próximos anos, impactando especialmente a porção mais baixa, que sofre com a redução de água doce. É muito provável que a seca também reduza a capacidade de produção de energia hidrelétrica na região.

Parte do desafio em reverter esse quadro está no fato de que o gerenciamento hídrico é bastante descentralizado no Brasil. Ou seja, não há uma autoridade reguladora para o rio todo que seja capaz de repartir igualmente os recursos, o que gera competição entre os estados e municípios.

Em 2001, foi criado o Comitê da Bacia Hidrográfica do Rio São Francisco (CBHSF), composto de 62 membros. Entre eles, há um grupo representando as comunidades tradicionais, que tecnicamente deveria acrescentar sua voz à priorização do uso da água. Mas “o problema do comitê é que ele não é convidado a participar [de decisões] pelo governo brasileiro”, explica Igor Oliveira.

Em 2008, foi lançado um programa de recuperação da Bacia do São Francisco, ao mesmo tempo em que o presidente Lula propunha um plano para desviar parte da água do rio para o Nordeste através do Projeto de Transposição das Águas do Rio São Francisco – o maior projeto de infraestrutura hídrica já idealizado no país, que ainda tem partes em construção.

“Uma maior vazão de água no Baixo São Francisco implicaria menos uso para irrigação e geração de energia nas partes altas da bacia. Mas isso [só] aconteceria se os impactos ambientais fossem priorizados”, diz Paulo S. Pompeu, que teme que a intensificação das mudanças climáticas resulte na redução ainda maior do fornecimento de água – uma torta para ser dividida em fatias cada vez menores entre todos os usuários do rio. “Num cenário de escassez de água, será ainda mais difícil implementar ações para fazer o rio voltar às suas condições naturais”, conclui.

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Esta reportagem foi originalmente publicada no site da Mongabay Brasil.

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