Por que gostamos de música? Nova pesquisa indica ligação com sobrevivência
'Estamos diante de uma linguagem universal, inerente à espécie', falou a VEJA Yuto Ozaki, da universidade japonesa de Keio, que liderou o projeto
Envolto em questões filosóficas maiúsculas — o mundo é finito?, Deus existe? —, Aristóteles (384 a.C.-322 a.C.) acrescentou mais uma ao rol das perguntas que o atormentavam intelectualmente. “Como a música, constituindo-se apenas de sons, consegue traduzir tão bem os estados da alma humana?”, indagava o grego, diante de uma percepção universal, a de que os humanos não apenas produzem melodias de rara sensibilidade, mas deleitam-se em ouvi-las. Vários giros da Terra depois, Charles Darwin (1809-1882) já havia incendiado o pensamento ocidental com sua teoria da seleção natural quando se pôs a refletir sobre como a musicalidade teria ligação com a evolução humana. “Essa é uma das mais misteriosas capacidades dos sapiens”, dizia ele, que observava como os ritmos, desde tempos ancestrais, “despertavam paixões ardentes” — o que sugeria ser mais um fator em prol da sobrevivência.
Bem-vindo a um tópico que causa constante ebulição entre os cientistas, sempre rachados sobre o tema. Para uma ala relevante, a música seria um fenômeno unicamente cultural, portanto, assimilado em sociedade — um pensamento que ganha eco na obra do célebre linguista Steven Pinker, professor da Universidade Harvard. “A música é uma tecnologia, não uma adaptação”, pontificou Pinker, elevando a fervura de um debate que acaba de dar um relevante passo adiante.
Uma vasta pesquisa, recém-publicada no periódico Science Advances, fez um contundente aceno à hipótese darwiniana. Depois de dissecar canções de 55 etnias tão distintas quanto árabe, basca, cherokee, maori e iorubá, quase uma centena de especialistas de 46 países (o Brasil incluído) constataram impressionantes padrões em comum entre elas, o que lhes forneceu base para apoiar a linha evolutiva. “A metódica análise mostra que estamos diante de uma linguagem universal, inerente à espécie”, falou a VEJA Yuto Ozaki, da universidade japonesa de Keio, que liderou o projeto. A equipe, composta por musicólogos, psicólogos, linguistas e biólogos, investigou itens bem específicos ao escutar pessoas cantando — alcance de graves e agudos, timbre, andamento e até a quantidade de notas com diferentes frequências contidas em um só som. Foi tudo de ouvido, já que os computadores ainda não são capazes de captar nuances de tal natureza. Conclusão: a música é como um idioma global, um esperanto de variados sotaques, uma ferramenta vital para a própria existência.
No século XIX, quando cutucava o tópico, Darwin trouxe à luz novos ângulos que já sustentavam suas ideias. Em A Descendência do Homem e a Seleção em Relação ao Sexo, de 1871, ele afirmava que muitas das características animais eram esculpidas no curso da evolução para dar uma mãozinha ao acasalamento, perpetuando as espécies. Citou, por exemplo, a cauda do pavão e, no caso do Homo sapiens, a música, justamente por sua singular capacidade de impulsionar a atração sexual. Outra linha de raciocínio que sacudiu a academia foi a de que o ato de cantar contribuiria para a união do bando, gerando vínculos sociais que teriam ajudado tribos pré-históricas a vingar. “É por sua habilidade para a cooperação com um número incontável de estranhos que os humanos dominam o mundo”, registrou o historiador Yuval Harari, em Sapiens: uma Breve História da Humanidade.
Algumas cabeças mobilizadas em torno da discussão defendem que a predisposição à música seria ainda fruto de uma evolução acidental, uma espécie de efeito colateral da luta humana pela sobrevivência. Uma pesquisa publicada na Nature lembra que homens e mulheres apreciam fenômenos que se repetem sob padrões conhecidos. Quando a espécie começou a associar certos sons e cheiros ao perigo, deixou de perecer por causas banais, um tremendo alívio. Como a música tem uma progressão lógica de notas, acordes e andamento, também se torna possível antecipar melodias — o que traz o mesmo tipo de segurança e conforto. Segundo uma corrente, é por isso que, ao escutar uma bela canção, o cérebro libera dopamina, hormônio ligado à felicidade. Quanto mais ela emociona, maior será a produção da substância, que acaba por desencadear um ciclo virtuoso desejável à reprodução. “A dopamina, afinal, estimula as pessoas a ir atrás de parceiros”, diz o psicólogo americano Geoffrey Miller, da Universidade do Novo México, nos Estados Unidos.
Uma pergunta que até hoje agita as rodas acadêmicas é por que apenas os humanos produzem harmonias de alta complexidade (nem mesmo os pássaros têm esse dom). Uma teoria é que a música se presta à necessidade do Homo sapiens de passar aos outros algo que a linguagem convencional não traduz — um estado de espírito. Ao alcançar esse degrau, a possibilidade de trocas de afeto se amplia. “A música é também um ingrediente do amor”, analisa a bióloga evolucionista Suzanne Sadedin. O elo amoroso, aliás, é outro relevante laço firmado ao longo da estrada da evolução. Do ponto de vista darwinista, a vida a dois elevou as chances de sobrevivência em meio aos inóspitos cenários de outras eras, uma vez que um protegia o outro. Mesmo distante da efervescência do debate de cunho científico, William Shakespeare (1564-1616) já ia ao coração do problema, ao sugerir: “Se a música é o alimento do amor, continue tocando”. E evoluindo.
Publicado em VEJA de 14 de junho de 2024, edição nº 2897