Não há nada no universo como o cérebro. Mesmo representando apenas 2% do peso corporal, ele utiliza 20% de nossa energia. A pedido do escritor Bill Bryson, autor de Corpo — Um Guia para Usuários, cientistas da Universidade de Durham, na Inglaterra, fizeram cálculos cujos resultados são fascinantes: um pedacinho de córtex de 1 milímetro cúbico, do tamanho de um grão de areia, pode conter 2 000 terabytes de informação, o suficiente para armazenar todos os filmes já feitos ou 1,2 bilhão de livros com 400 páginas cada. “O grande paradoxo do cérebro é que tudo o que sabemos sobre o mundo vem de um órgão que por si mesmo nunca o viu”, escreveu Bryson. “Ele existe no silêncio e na escuridão, como um prisioneiro na masmorra. Não tem receptores de dor e nenhum sentimento, literalmente. Nunca sentiu o tépido calor do sol nem o frescor de uma brisa. Para seu cérebro, o mundo não passa de uma torrente de impulsos elétricos, como sinais de código Morse”. Esse pedaço enigmático de carne, cuja consistência já foi comparada a tofu, manteiga amolecida ou manjar branco, passou nos últimos dez anos por um minucioso rastreamento — o Human Brain Project (HBP), lançado com pompa e circunstância em 2013 por um colegiado de institutos e universidades da Europa. Uma década depois, ele traz revelações, com resultados mistos, de extraordinárias descobertas e algumas decepções.
Conhecido como o maior programa científico já financiado pela União Europeia, o HBP pretendia criar uma réplica virtual do órgão. No total, foram mais de 600 milhões de euros (o equivalente a 3,2 bilhões de reais) investidos, dezenas de laboratórios, cerca de 500 pesquisadores engajados e milhares de artigos publicados em periódicos acadêmicos. Os avanços não foram poucos. Um atlas virtual consolida o mapeamento microscópico, anatômico e funcional de 200 regiões cerebrais. Modelos digitais permitiram a compreensão de processos, como a memória, e de doenças, como a epilepsia. Ao mesmo tempo em que nascia o HBP, outros projetos bilionários ganharam corpo nos EUA, no Japão e, posteriormente, na Austrália, na China e na Coreia do Sul, responsáveis também pelo desenvolvimento de exoesqueletos capazes de devolver o movimento a paraplégicos e inteligências artificiais com o poder de ler pensamentos. A réplica virtual, no entanto, permanece no campo das ideias, e condições urgentes, como ansiedade e depressão, ainda não foram totalmente decifradas.
As dificuldades envolvendo o estudo da massa cinzenta são inúmeras, a começar por conflitos de ego e rusgas políticas. Quando o destemido plano foi anunciado, parte da comunidade viu a ideia com ceticismo. Ao longo do trabalho, disputas e desentendimentos levaram a debandadas e mudanças de gestão. A falta de união dificultou conquistas mais ambiciosas, mas o verdadeiro empecilho, desafio de cientistas em todo o mundo, continua sendo o objeto de pesquisa. “O cérebro humano tem aproximadamente 86 bilhões de neurônios, que são interconectados por até 100 trilhões de sinapses. Isso é mais do que o número total de estrelas na nossa galáxia”, afirma o neurologista Igor de Lima e Teixeira, da Universidade Estadual Paulista (Unesp). São mais de 100 tipos de células diferentes, um sistema imunológico próprio e conexões que se reorganizam a cada aprendizado, a cada exercício, a cada noite de sono — com particularidades profundas de um indivíduo para outro. E o mais assustador (ou instigante): ninguém sabe como tudo isso realmente funciona. No coração, as 3 bilhões de células se contraem a cada disparo elétrico para bombear o sangue; nos rins, pequenos capilares filtram o plasma para eliminar as toxinas; na imunidade, células de defesa esperam o desconhecido para disparar um torrente de anticorpos. Como a atividade bioquímica nos neurônios gera pensamentos e uma consciência? Essa ainda é uma incógnita.
Para os pesquisadores, ambiguidade é a palavra que melhor descreve o estudo do cérebro. Conquistas dignas de ficção científica são feitas todos os dias com base em um órgão cujo próprio funcionamento nos coloca de frente às lacunas do conhecimento. Enquanto doenças sérias e ascendentes, como o Alzheimer, continuam sem solução, ativistas lutam para proteger a humanidade de implantes, como o sintetizado pela Neuralink, de Elon Musk (leia na pág. 60), que buscam conectar nossa cabeça literalmente à internet. “A neurotecnologia é inevitável e ajudará a compreender esse órgão e aumentar as capacidades humanas, mas o cérebro é o santuário da mente e precisa ser defendido”, disse a VEJA Rafael Yuste, neurocientista envolvido no projeto Brain, versão americana do HBP, e um advogado dos chamados neurodireitos. Afinal, é no cérebro que reside a tal experiência humana, resumida com louvor pela constatação, sempre atual, do filósofo francês René Descartes (1596-1650): penso, logo existo.
Publicado em VEJA de 15 de setembro de 2023, edição nº 2859