O tempo congelado
A análise de um enorme bloco de gelo da Antártica ajudará a desvendar o clima na Terra há 1,5 milhão de anos — e daqui a séculos
À primeira vista, a missão que a União Europeia de Geociências começará no início de dezembro pode parecer um tanto extravagante: extrair da Antártica um bloco de gelo de aproximadamente 3 quilômetros de extensão e 1,5 milhão de anos de idade e levá-lo para análise em laboratórios europeus. Por que realizar uma empreitada dessa envergadura? O projeto, que custará o equivalente a 133 milhões de reais à União Europeia, tem por objetivo debruçar-se sobre os mistérios daquele que será o objeto de estudo mais antigo já observado. No gigantesco bloco de gelo estão guardadas informações que devem levar à compreensão do que ocorreu com o clima, a atmosfera e, por extensão, com a geografia e a vida na Terra nos últimos 1 500 milênios. Não bastasse esse olhar privilegiado sobre o passado, as descobertas decorrentes da prodigiosa expedição devem ainda ajudar a pensar no que poderá ocorrer no planeta nos séculos futuros.
Plantada a mais de 20 000 quilômetros do continente europeu, a base escolhida para sediar a missão é a Little Dome C. Ela fica na região oriental da Antártica, em área com temperatura média de 54,5 graus negativos e altitude de 3,2 quilômetros. O local é um dos mais inóspitos do globo — lá são avistados apenas raros pássaros, sempre em rápida passagem. Doze equipes de dez países partirão daquele ponto extremo para perfurar a geleira. Com poderosas brocas, dividirão o imenso bloco em pedaços de 4 metros de comprimento, que depois serão transportados em refrigeradores.
Batizada de Beyond Epica (Além de Épica), a expedição dará continuidade ao trabalho do Epica (sigla em inglês para Projeto Europeu de Extração de Gelo na Antártica), que teve relevante papel na compreensão do continente gelado. Iniciado em 1995 e encerrado em 2005, o Epica reuniu cientistas europeus em torno de um esforço então pioneiro: analisar blocos do gelo antártico. Durante o trabalho, os pesquisadores extraíram uma geleira formada há 800 000 anos. Ao estudarem o material, descobriram, por exemplo, que, durante as eras do gelo pelas quais a Terra passou, a queda de temperatura estava em sincronia com a diminuição da concentração de gases do efeito estufa. O contrário também foi verdadeiro: períodos de climas quentes estiveram relacionados ao aumento de gases como o carbônico e o metano. A constatação é uma das bases científicas da conclusão de que o atual aquecimento global tem relação com a atividade humana, que vem se encarregando de lançar na atmosfera, artificialmente, gases do efeito estufa.
A exploração da Little Dome C aprofundará agora o conhecimento sobre as eras climáticas. Acredita-se que, há cerca de 900 000 anos, a frequência dos períodos de glaciação, que cobriam até 30% do planeta, fosse constante: eles ocorreriam a cada 40 000 anos. Contudo, pouco menos de 1 milhão de anos atrás deu-se uma daquelas eras que desordenou tal periodicidade. O motivo disso é desconhecido. Por meio da análise do gelo da Little Dome C, espera-se, enfim, desvendar esse enigma. Para cumprirem a meta, os pesquisadores analisarão bolsões de ar aprisionados na geleira. Ao examiná-los, os cientistas medirão níveis de gás carbônico e metano ali presentes. Assim será possível estudar a composição da atmosfera no momento em que o gelo foi formado.
A Beyond Epica deve levar entre quatro e cinco anos apenas na perfuração da geleira. Depois disso, dedicará outro ano à análise do material recolhido. Pode parecer um tempo demasiado longo. Não, não é — quando se consideram os ganhos que dele podem decorrer. Explicou a geofísica francesa Catherine Ritz, membro do Beyond Epica, na divulgação da expedição: “Se quisermos enxergar o que acontecerá com o clima no futuro, com o aumento de emissões de gases do efeito estufa, precisaremos de modelos. E esses modelos serão calibrados de acordo com o que já aconteceu”.
Publicado em VEJA de 1º de maio de 2019, edição nº 2632
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