Na restauração de tela de Monet que pertencia a Churchill, uma curiosa descoberta
O processo revela a insólita camada de resíduos de charuto — e de lenha queimada — do mítico premiê britânico
O charuto fazia parte da fisionomia de Wiston Churchill (1874-1965), quase sempre no canto da boca. O vício, em um tempo em que maus hábitos eram desdenhados, era definidor da personalidade pública do primeiro-ministro britânico que ajudou a derrotar o nazismo de Hitler na Segunda Guerra. Ele levava à boca de oito a dez por dia, quantidade absurda em qualquer época e sob qualquer medida. Os cubanos da marca Romeo y Julieta que gostava de fumar lançavam nos pulmões do líder e no ar ao redor dele uma mistura complexa de substâncias nocivas, como monóxido de carbono, alcatrão, hidrocarbonetos e metais pesados. A mistura afetava a saúde do premiê, dos convivas que o cercavam e, descobre-se agora, em revelação fascinante, até mesmo uma tela de Claude Monet (1840-1926), intitulada Charing Cross Bridge, parte da coleção particular de Churchill.
A joia restaurada faz parte de uma exposição de obras do francês na Courtauld Gallery, em Londres. Celebra-se a qualidade da peça impressionista, mas especialmente o brilho original, descortinado depois de os especialistas limparem as impurezas provocadas pelas baforadas. A extração da sujeira (havia também sinais de lenha queimada) foi comemorada como a reconquista de um Monet e um passo da ciência associada à história.
A princípio, os conservadores do patrimônio histórico, liderados por Rebecca Hellen, acreditavam que Charing Cross Bridge era uma pintura impressionista típica, mas logo perceberam que a camada escura sobre a tinta amarela não era somente obra da habilidade do artista. O brilho pálido, depois da limpeza, revelou-se extraordinário. A tela foi um presente do agente literário americano, Emery Reves, no Natal de 1949. Retrata uma vista enevoada da icônica ponte de Londres com as Casas do Parlamento ao fundo, escolhida devido à admiração do político pelo trabalho do gênio francês. “Sabendo que Monet é seu pintor favorito, procurei uma de suas boas pinturas por muitos meses”, escreveu Reves ao presenteado. “É o mais puro impressionismo, nada além de luz e cor, sem nenhum desenho”, resumiu à perfeição.
O quadro ficou pendurado na sala de estar de Churchill em Chartwell, no condado de Kent, depois da guerra, onde permaneceu até a morte dele, em 1965. Recebia, de modo inapelável, sublinhe-se com veemência, a nuvem de fumaça de um homem que fazia de tudo, inclusive pintar, como hobby, tendo o canudo aceso entre os lábios ou entre os dedos. O tesouro foi depois transferido para o National Trust, organização de conservação do patrimônio histórico do Reino Unido.
Monet assinou e datou a obra com o ano de 1902, embora tenha começado a trabalhar nela três anos antes e continuado a fazer mudanças até 1923. O resultado mostra o fascínio do artista pela névoa que caracterizava Londres na época, em grande parte devido à poluição resultante da intensa queima de carvão. “É preciso dizer que o clima é muito idiossincrático”, escreveu o artista à sua mulher, Alice Hoschedé, em 1900. “Você não acreditaria nos efeitos incríveis que vi nos quase dois meses em que estive olhando para o Rio Tâmisa.”
A pintura presenteada a Churchill fazia parte de uma série maior, de 37 telas. Iniciadas durante três visitas de Monet a Londres, entre 1899 e 1901, elas retratam, além de Charing Cross, a Ponte Waterloo e as Casas do Parlamento — locais vistos da janela do lendário Hotel Savoy, onde o gaulês se hospedava quando visitava a capital. A série foi revelada pela primeira vez em Paris, em 1904. O impressionista queria muito mostrá-la em Londres no ano seguinte, mas o projeto fracassou. A atual exposição, intitulada Monet e Londres: Vistas do Tâmisa, realiza, enfim, de modo parcial, o desejo do pintor. E mostra aos admiradores dos luxos da civilização — as pinceladas de Monet e a retórica inigualável de Churchill — que o conhecimento humano de mãos dadas com a ciência é capaz de, a um só tempo, tirar a cortina de capítulos históricos e reascender o aspecto original de obras indizíveis. E, então, descobrimos que nem tudo se deu entre sangue, suor e lágrimas. Havia um tanto de arte, o que faz toda a diferença.
Publicado em VEJA de 18 de outubro de 2024, edição nº 2915