Michelangelo pode ter eternizado a imagem de uma mulher com câncer de mama
Estudo revela que o gênio italiano teria incluído em ao menos uma personagem da Capela Sistina, no Vaticano, sinais da doença
O teto da Capela Sistina, no Vaticano, é prova de que a humanidade pode, sim, dar certo. Olhá-la, apesar das hordas de turistas, é ter contato com uma obra-prima do Renascimento. Encomendado pelo papa Júlio II a Michelangelo Buonarotti (1475-1564), o afresco retrata o Velho Testamento pelos olhos do artista. Da Gênesis, com a separação da luz e das trevas, ao Juízo Final, está tudo lá representado. Um detalhe, contudo, levou cinco séculos para ser percebido: de acordo com um consórcio internacional de especialistas em biomedicina e história da arte, o pintor teria eternizado a imagem de uma mulher com câncer de mama, atalho para futuros avanços da medicina (veja no quadro).
A cena desponta na égide do santuário, em um trecho conhecido como O Dilúvio Universal. Na pintura, cerca de cinquenta pessoas são vistas em absoluto desespero, aguardando o triste fim depois de serem deixadas para trás pela Arca de Noé. Uma figura chama a atenção nesse cenário. Enquanto a maior parte das pessoas se movimenta, tentando fugir da água que sobe rapidamente, no primeiro plano, uma mulher está sentada, coberta apenas por um pano azul, aparentemente resignada, enquanto uma criança chora logo atrás dela. De acordo com os autores, seria ela a vítima da doença, naquela época, mortal.
Para os olhos clínicos, os sinais estão todos lá — além da assimetria dos seios, algo incomum nas obras do artista, uma das mamas ainda apresenta nódulos, indicativos de tumor, e a deformação de um dos mamilos. Os sintomas ainda foram suficientes para excluir a possibilidade de formas de mastite comuns naquela época. O sinal mais forte, no entanto, está na biografia do artista: aos 17 anos, ele trabalhou como auxiliar em autópsias, o que o teria familiarizado com as características oncológicas. “Parece que o conhecimento anatômico e patológico de Michelangelo o levou a identificar que o câncer de mama inevitavelmente levava à morte do indivíduo afetado”, disse a VEJA Andreas Nerlich, médico patologista e autor do artigo publicado no periódico científico The Breast. “Portanto, é plausível que ele tenha usado seus conhecimentos como uma metáfora para a inevitável decadência humana.”
A prática de procurar sinais de doenças em obras de arte é chamada de iconodiagnóstico e já foi aplicada a uma enorme diversidade de representações de períodos diferentes. Diego Velázquez (1599-1660), por exemplo, teria representado a infanta Margarita com uma síndrome genética, a McCune-Albright, em As Meninas; Leonardo da Vinci (1452-1519), por hipótese, desenhou marcas de xantelasma, com formações de gorduras cutâneas, na Mona Lisa. “A medicina e a arte sempre estiveram intrinsecamente ligadas, sobretudo porque ambas trabalham com corpos”, diz o médico do Departamento de Medicina Preventiva da Faculdade de Medicina da Universidade de São Paulo (USP) Alexandre Faisal. “É natural que, em diferentes momentos da civilização, pintores tenham se ocupado de retratar o sofrimento físico e mental do ser humano.”
Os autores do artigo agora publicado, e de repercussão internacional, ainda se debruçam sobre outra especulação. A suposição, fascinante demais para ser coberta por pentimentos: a mulher e a criança retratadas seriam, na verdade, Michelangelo e sua mãe, Francesca Del Sera, que morreu aos 30 anos de uma longa e desconhecida doença, quando o autor tinha apenas 6 anos de idade. O câncer, atrelado a eufemismos, ainda hoje é descrito como “longa enfermidade”. Não há certezas absolutas, mas é sabido que o artista tinha o costume de deixar algumas pistas de sua vida em detalhes das obras.
De fato, medicina e arte são temas que se aproximam com frequência. A surdez de Beethoven é sempre trazida como um dos diferenciais de suas composições; a loucura de Van Gogh é fortemente associada à genialidade do impressionista. É movimento bem-vindo. “A combinação do conhecimento histórico e médico nos fornecerá muito mais exemplos para a compreensão das condições de vida e também da influência das doenças na história, bem como potenciais intervenções terapêuticas em populações do passado”, diz Nerlich. Afinal, aprender com o passado é fundamental para compreender o presente. Fazer essa viagem por meio da arte é movimento ainda mais gratificante.
Publicado em VEJA de 15 de novembro de 2024, edição nº 2919