‘Medicina é meu hobby favorito’, diz pesquisadora reconhecida por Stanford
Aos 89 anos, a doutora Angelita Gama, da USP, entrou para a seleta lista dos cientistas mais influentes do mundo
“Nunca havia pensado em ser médica. Venho de uma família de professores e todos esperavam que eu seguisse o mesmo caminho. Por acaso, fiz amizade com um grupo de meninas que tinham o sonho de fazer medicina e fui influenciada. Enlouqueci meus pais quando anunciei minha vontade de trabalhar com saúde, não tive apoio de ninguém. Mas, mesmo assim, insisti no meu desejo e passei em oitavo lugar em medicina na USP.
Naquela época, o número de mulheres no curso não passava de vinte. Primeiro, me apaixonei pela área de cardiologia. Mas, pouco tempo depois, descobri minha vocação para cirurgia. Foi mais uma grande pedra no meio do caminho, porque praticamente não existiam mulheres nessa especialidade, que é disputadíssima. Me esforcei e consegui ser aceita. Apesar desses êxitos, foram muitos “nãos” e barreiras. A maioria dos lugares nunca tinha sido ocupado por mulheres, precisei ser muito determinada.
Acredito que, mesmo com os desafios, tive sorte. Estava em um meio 99% masculino, mas fui muito bem aceita pelos meus colegas e professores, que sempre me incentivaram. No entanto, não consigo esquecer um episódio pontual. Uma vez, no Hospital das Clínicas (HC) da USP, um paciente se assustou quando me apresentei como cirurgiã e se recusou a ser operado por mim. Eu, sempre segura do meu trabalho, respondi que até poderia chamar um colega homem para realizar o procedimento, mas avisei que ele estaria perdendo a melhor especialista de lá.
Importante dizer que fui a primeira mulher a fazer residência no HC, junto com uma cirurgiã plástica que acabou desistindo da carreira. Me especializei em gastrenterologia e desde então mergulho nas pesquisas na área. Me destaquei desenvolvendo técnicas para evitar colostomias e protocolos revolucionários para tratamento do câncer de reto. Fui a primeira a apontar que a radioterapia deveria ser aplicada antes da cirurgia, mas fui severamente atacada na época.
Não penso em me aposentar. Trabalhar para mim é um hobby. Se paro de trabalhar, vou fazer o quê? Tenho boa cabeça, bom físico, experiência, não tenho motivo para deixar isso tudo de lado. Atualmente, tenho outros hobbies também. Faço aulas de xadrez toda quarta-feira e participo de competições. Também adoro televisão, teatro, cinema. Mas o trabalho é minha atividade favorita. Segui sempre o que gosto e me faz bem. Mesmo aos 90, levanto às 7h, faço operações de manhã e à tarde atendo consultório. Também recebo muitos artigos estrangeiros para revisar durante o dia. Sou uma das pesquisadoras mais consultadas e citadas no mundo inteiro.
Nunca me senti sacrificando nada porque me dedicar inteiramente à medicina foi minha opção. Não tive filhos porque não quis, mas tenho uma família imensa. Somos mais de 40 pessoas de todas as idades e nos damos bem. Temos muitos amigos. Não me arrependo de não ser mãe, nunca tive aquele instinto maternal. Nos anos 60, me casei com um cirurgião e decidimos que não seríamos pais. Ser mãe é quase uma profissão, eu não estava disposta a abrir mão do meu trabalho.
Não dá para ter tudo ao mesmo tempo. Eu apostei no que eu sabia que tinha o dom. Naquela época, minha mãe e minha sogra não aceitaram minha decisão. Ninguém entendia a opção de não ter filhos, mas elas nunca fizeram a minha cabeça. Esse reconhecimento de Stanford é uma mensagem para as mulheres de que elas podem ser e fazer o que quiserem. A nova geração compreende isso muito melhor do que a minha e tem tudo para ser fantástica.”