Expedição reconstruirá a trajetória de Darwin, pai da teoria da evolução
Trata-se de um modo de olhar para o futuro da ciência mas também de abandonar ideias criacionistas
A publicação de um dos clássicos seminais da civilização, A Origem das Espécies, de Charles Darwin, em 1859, teve o efeito de um tsunami na Inglaterra vitoriana. Os biólogos se viram desmentidos em sua certeza de que as espécies são imutáveis. A Igreja ficou perplexa por alguém desafiar o dogma segundo o qual Deus criou o homem à sua semelhança e os animais da forma como os conhecemos. A sociedade se chocou com a tese de que o ser humano não é especial na natureza e, ainda por cima, tem parentesco com os macacos. O texto, que mudaria para sempre as convicções da humanidade, foi resultado dos estudos de Darwin deflagrados em 1831 a bordo do brigue HMS Beagle, em uma expedição de cinco anos que partiu do Reino Unido, chegou à América do Sul e depois passou pela Austrália e África do Sul (veja no quadro). Aquela travessia, feita em um tempo em que Darwin, de apenas 22 anos, estava prestes a se tornar clérigo da Igreja Anglicana, será agora refeita por um grupo de pesquisadores, dos quais fazem parte 200 futuros conservacionistas.
Chamada de Darwin200, a aventura zarpou em 15 de agosto, de Plymouth, no Reino Unido, o mesmíssimo ponto de partida do HMS Beagle. Durante os próximos dois anos, a bordo do Oosterschelde, navio histórico construído em 1917, os pesquisadores seguirão rota idêntica à do naturalista. “A atual jornada demorou dez anos para ser organizada”, disse a VEJA o geógrafo Stewart McPherson, coordenador da empreitada. “O objetivo é treinar e inspirar as novas gerações a resolver problemas científicos.”
É um desafio fascinante. Ao longo da viagem, quatro projetos diferentes investigarão aves e grandes animais marinhos; concentração de microplásticos no mar; temperatura do ar e da água; e, por último, pequenas e peculiares aranhas voadoras capazes de embarcar no navio em alto mar. A parte mais relevante da viagem, contudo, será desenvolvida nos portos. No total, serão 32 paradas. Em cada uma delas, um pequeno grupo de jovens pesquisadores, chamados carinhosamente de “Líderes Darwin”, se juntará ao time embarcado para desenvolver um projeto científico envolvendo espécies descritas no documento original, a base para o seminal e revolucionário trabalho darwiniano.
O destino mais célebre do HMS Beagle foi o arquipélago de Galápagos, no Equador, onde o cientista observou as principais características que o fizeram abrir os olhos para a evolução. Haverá, naturalmente, muita celebração pelas bandas de lá. Mas há imenso interesse também no Brasil. O Oosterschelde chegará por aqui em outubro, com passagens por Fernando de Noronha, Salvador e Rio de Janeiro. Na última parada, o Museu do Amanhã receberá a botânica e tataraneta do pai da biologia moderna, Sarah Darwin. Além disso, o equivalente a 10 000 dólares em mudas de árvores serão plantadas para ajudar a reconstruir a floresta atlântica. Larissa Vidal Melo, de 21 anos, estudante de biologia, foi uma das selecionadas para a aventura revivida. Ela estuda baleias e golfinhos no Laboratório de Ecologia e Conservação Marinha da Universidade Federal do Rio (ECoMAR/UFRJ), e se juntará à trupe em Cabo Verde, na África. “Estou animada porque vamos conhecer muita coisa nova, né?”, diz, com a simplicidade de quem sabe estar desbravando novos mares e novos horizontes. “Além de ser um modo de ajudar a construir o futuro da ciência no Brasil”.
Ela tem razão, mas o resultado da moderna navegação tem outro significado, ainda mais amplo e necessário. Em tempos de tanto negacionismo multiplicado pelas redes sociais — e em que pese o evidente respeito aos credos religiosos das pessoas —, o crescimento da ideia criacionista em oposição à ciência, como se voltássemos ao século XIX, é atraso civilizatório. Parece um tanto inacreditável ter de chamar novamente Darwin para o centro do palco.
Publicado em VEJA de 15 de setembro de 2023, edição nº 2859