“É preciso viver fora da zona de conforto”, diz brasileira em Harvard
A psicóloga mineira Luana Marques transpôs barreiras sociais até se tornar professora na universidade americana e autora best-seller
Cresci numa cidade pequena, Governador Valadares, em Minas, com uma visão do mundo mais limitada, mas sempre com a minha mãe dizendo que, independentemente das dificuldades, eu podia estudar e melhorar de vida. Até que tive a chance de fazer um intercâmbio e partir para Búfalo, nos Estados Unidos. Os primeiros meses foram terríveis — chorava de frio. Mas fui me acostumando, gostando do país, da forma de viver e pensar ali. E consegui entrar na faculdade. Acho que só fui perceber que sofri preconceito depois de cinco ou seis anos na Universidade Harvard. As pessoas brincavam com meu sotaque, mas minhas particularidades também abriram as portas para o trabalho de pesquisa e a carreira.
Eu não pensava em seguir psicologia. Nascendo pobre, e cheia de traumas, imaginava que só fazendo medicina ou advocacia para subir na vida. Mas, na faculdade, fiz um estágio numa clínica que tratava transtornos mentais, e me aceitaram porque precisavam de alguém que falasse português. Um tempo depois, uma professora de Harvard sugeriu que eu fosse atender uma comunidade de latinos. É aquela história: “Você é latina, vai trabalhar com a sua tribo”. Transformei esse jeito de enxergarem as coisas em oportunidade. E, aí, fiz algo que aprendi com a minha mãe: trabalhar, trabalhar, trabalhar…
Dentro da psicologia, me dediquei ao método mais validado pela ciência, a terapia cognitivo-comportamental (TCC). E, não bastasse ser a prática mais respaldada nos EUA, aquilo fazia sentido para mim porque trazia questões que aprendi com a minha avó. Aos 15 anos, vivi uma fase de muita timidez, não queria sair, conversar com pessoas estranhas… Sem saber o que era, minha avó fez um tratamento de exposição comigo, uma das bases da TCC. Então, digo que tenho três fases na carreira. A primeira foi aprender todos os protocolos terapêuticos, testá-los e validá-los em estudos e treinar outros profissionais. Acontece que, rodando em Boston, eu percebia que não teríamos psicólogos suficientes para ajudar tanta gente. Aí passei a treinar também pessoas sem essa formação que poderiam trabalhar na área da saúde mental. Um segundo caminho foi atuar na clínica privada, que é onde você ganha melhor. Cheguei a ir à Índia só para tratar um paciente bem rico. Foi com essa experiência, pessoal e profissional, que cheguei ao terceiro momento da minha carreira, o do livro Viver com Ousadia (Editora Sextante). Eu tratava o bilionário e o cara pobre que tinha saído da cadeia. E essas observações me levaram a formular o conceito de evitação psicológica.
Com frequência, diante de uma crise no trabalho ou um relacionamento ruim, buscamos evitar o problema. Não conheço quem não tenha passado por isso. Eu mesma passei. Mas é melhor sentir ansiedade por pouco tempo do que deixar que ela se prolongue por causa da evitação. Porque, se você não para esse processo, seu corpo te para. Isso acontece na fobia social, no TOC (transtorno obsessivo-compulsivo), no burnout… E, como pode ser difícil visualizar e superar a situação sozinho, pensei que, ao escrever um livro, eu seria, de certa forma, como o personal trainer que auxilia a começar a academia.
Com trabalho e filho pequeno, eu escrevia todo dia das 4 às 7 da manhã. Escrever foi a melhor terapia que já fiz, porque me permitiu contar minha história, a daquela criança de Valadares com tantos traumas que chegou a chefiar um laboratório em Harvard e a estar à frente da Associação Americana de Ansiedade e Depressão. Foi escrevendo e conversando com os pacientes que percebi que os ataques de asma da minha infância no fundo eram crises de pânico, e elas passaram quando meu pai, que brigava muito, saiu de casa. O livro fez sucesso entre os americanos, e eu precisava trazê-lo para cá. Minha mensagem não é a de viver o sonho de sair do Brasil e crescer nos EUA. É o sonho de viver fora da zona de conforto. De saber que é importante lutar e mudar.
Luana Marques em depoimento dado a Diogo Sponchiato
Publicado em VEJA de 5 de abril de 2024, edição nº 2887