Dolly 2.0: o experimento que inaugura uma nova era na clonagem
Quase trinta anos depois, o tempo é de naturais avanços e menos dúvidas éticas
Foi um estrondo. Em fevereiro de 1997, o anúncio do nascimento da ovelha Dolly, pelas mãos do embriologista escocês Ian Wilmut (1944-2023), marcou uma virada na história da civilização e da ciência. A humanidade brincava de Deus. “Como Eva no Velho Testamento, feita com uma das costelas de Adão, Dolly veio ao mundo como um pedaço de outro ser adulto”, anotou VEJA em reportagem de capa. Seria, enfim, a partir dali, possível clonar qualquer mamífero e, no limite, criar exércitos de seres humanos idênticos? Na prática, sim. Na realidade, experiências semelhantes deram errado.
Agora, depois de 28 anos de fracassos, parece ter chegado a hora de uma nova era, a Dolly 2.0. Um artigo publicado na renomada revista científica Nature Communications revela ter ocorrido a reprodução em laboratório, como cópia, de um macaco rhesus. O feito foi realizado por um grupo de pesquisadores da China. “Quando vimos que funcionou, ficamos radiantes de felicidade”, disse o autor e líder do estudo, Qiang Sun, em entrevista a VEJA. “Agora, o macaco clonado já atingiu a idade de 3 anos e meio e está se desenvolvendo bem.” O trabalho com um símio, dado ser geneticamente mais próximo do ser humano do que uma ovelha, naturalmente atrai interesse, embora do ponto de vista técnico as semelhanças entre um método e outro, o de trinta anos atrás e o de agora, sejam muitas.
Retira-se o núcleo de uma célula adulta, como a da pele ou a do fígado, de modo a inseri-la em um óvulo desprovido de DNA. No caso da Dolly, o núcleo de uma célula da mama foi a origem do material genético — por esse motivo, aliás, ela recebeu o charmoso nome, em referência à voluptuosa atriz e compositora Dolly Parton. Houve, contudo, naquele arranjo e em muitos outros que vieram depois, um imenso nó. O principal motivo: na clonagem, as placentas não se desenvolvem a contento, dada a quantidade de etapas biológicas atropeladas. Com o rhesus, os especialistas desenvolveram o pulo do gato: depois de deflagrada a cópia, logo no início da gestação trataram de substituir as células supostamente defeituosas para a formação do tecido que abrigaria o feto por outras saudáveis, perfeitamente adaptadas. É salto simples e extraordinário — e assim caminham os avanços memoráveis. “É desafiador, por ser completamente antinatural”, diz a professora do Departamento de Genética e Biologia Evolutiva do Instituto de Biociências na Universidade de São Paulo (USP), Lygia da Veiga Pereira.
O primata chinês celebrado com pompa e circunstância foi o único, entre onze embriões testados, a vingar. É taxa de sucesso muito superior à das irmãs da Dolly, que não vieram ao mundo. Falta, contudo, muita estrada para que, enfim, cante-se a vitória total diante dos freios da natureza. O passar do tempo tratou também de acalmar os temores, de estabelecer limites e possibilidades para a multiplicação de iguais. A ideia dos clones onipresentes hoje é tola, e convém lembrar que mesmo os pais da Dolly tentaram deixar claro o que pretendiam, e não se tratava de reinventar a roda, como se pudéssemos replicar amados animais de estimação ou estúpidos líderes autoritários. O objetivo foi sempre outro, mais modesto e nem por isso menos ruidoso.
Em entrevista à Nature, em 2014, os embriologistas envolvidos na criação do adorável animal de pelo branco imaginavam um imenso rebanho de ovinos idênticos capazes de produzir, em seu leite, substâncias de interesse para a medicina humana. Hoje, mira-se, por ora, apenas o mundo animal — e nós, bípedes, teremos de esperar mais um pouco. “A clonagem viabilizaria a produção de animais idênticos na pecuária, o que pode tornar a produção muito mais eficiente”, diz o professor da Faculdade de Zootecnia e Engenharia de Alimentos da USP, Flávio Meirelles. Trata-se, enfim, da possibilidade de multiplicação dos bovinos com a melhor carne ou com a produção leiteira mais generosa. Pode ser extraordinário, e não seria o fim dos tempos da ética e sensatez.
Contudo, os riscos com a Dolly 2.0 não podem ser descartados, de modo algum. Tome-se como exemplo um triste episódio de 2018. Naquele ano, o chinês He Jiankui anunciou o nascimento de gêmeas com o DNA modificado para que pudessem resistir ao vírus da aids que o pai havia contraído. Houve espanto, houve genuína grita. Pouco tempo depois, um tribunal da cidade de Shenzhen (província de Guangdong), onde ficava o laboratório do transgressor, condenou He Jiankui por “ter realizado ilegalmente a manipulação genética de embriões com fins reprodutivos”.
O rhesus clonado, tal qual a Dolly, é personagem atrelado ao conhecimento humano. Não pode provocar medo e tampouco desleixo. Há no horizonte extraordinárias janelas de oportunidade que ajudarão o ser humano a lutar contra doenças e a aprimorar a alimentação. Mas há também armadilhas perigosas. Wilmut, o genitor de Dolly, deu a deixa, com tranquilidade: “As pressões para a clonagem humana são poderosas. Mas, embora seja provável que alguém, em algum momento, tentará, não precisamos supor que isso se tornará uma característica comum ou significativa da vida humana”. Que assim seja.
Publicado em VEJA de 19 de janeiro de 2024, edição nº 2876